Leão recebeu a sagração episcopal
em 29 de setembro de 440. Tento imaginar como era o seu tempo: as diversas
hordas bárbaras invadindo o Império Romano, o declínio político de Roma, as
diversas heresias que ressurgiam dentro do Cristianismo e a insubordinação da
Igreja Oriental às tentativas de Leão em estabelecer a supremacia do bispado de
Roma, por meio do papado, sobre as demais igrejas. Assim, é surpreendente que
Leão seja exatamente a pessoa que a História precisava naquele momento e
naquela posição: culto, teólogo firme e diplomata.
Em seus sermões, 2 pontos me
chamaram a atenção: 1) sua firmeza teológica diante das inúmeras heresias que
ressurgiam no Cristianismo; 2) os seus sermões confirmam a razão pela qual o
Cristianismo desenraizou o paganismo do Império Romano, a saber, a prática da
misericórdia.
Os escritos de Leão sobre as duas
naturezas de Jesus, sobre a Trindade e o Espírito Santo são de uma clareza e
paixão inegáveis. Leão é um apologista apaixonado pela Trindade e domina a
linguagem a ponto de perceber que ela deve ser forçada ao máximo para que a beleza
do mistério cristão impacte a todos. Ele, portanto, se levanta contra os
monofisistas do seu tempo: escreve contra os arianos, os maniqueus, contra
Apolinário, pelagianos, priscialianistas e tantos outros. Seus sermões deveriam
ser leitura obrigatória nos Seminários cristãos, pois os estudantes seriam
aprendizes de uma escrita que sabe coadunar verdade e beleza, como hoje
pouquíssimo se vê nos púlpitos de nossas igrejas. Isto é maravilhoso: são
sermões! Mensagens de um pastor às suas ovelhas! Sermões curtos, mas bíblicos.
Curtos, contundentes, profundos e ousados, porque sabem que devem orientar não
somente a fé, mas também a prática de suas ovelhas. E aqui se pode ver mais uma
qualidade no Cristianismo do tempo de Leão que, mesmo entre as Igrejas Reformadas, ainda era comum até
“ontem”: o ano litúrgico. Todos os sermões de Leão seguem os eventos do Ano
Litúrgico e, lendo-os dessa forma, também percebo como que perdemos em qualidade
expositiva e comunicativa ao abolimos o ano litúrgico, contudo, infelizmente,
talvez esse seja um daqueles pontos em que a mudança cultural dite suas regras e não há nada o que possamos fazer para impedir.
Muito se fala sobre o papel do
martírio no crescimento da Igreja pela Europa, Norte da África e Oriente Médio,
todavia, com o fim das perseguições aos cristãos a partir de 313, o impacto do
Cristianismo sobre os pagãos se deu no amor que os cristãos tinham pelos
pobres. Juliano, que subiu ao trono em 361, tenta em vão reavivar o paganismo
no Império. É de Juliano a frase: “Esses galileus ímpios alimentam não apenas
os seus próprios pobres mas os nossos também; nossos pobres não recebem nossos
cuidados”. E para a continuidade da expansão cristã, essa caridade encontrará
nos sermões de Leão o seu maior incentivador, assim, é inegável que, num tempo
histórico tão conturbado, a Igreja tenha fincado os pés solidamente a partir de
suas ações de misericórdia. Penso eu que a construção da civilização ocidental
passa pelas obras de caridade operadas sobejamente pelos cristãos. As chamadas de Leão em seus sermões ao perdão das dívidas financeiras e à soltura de presos, sermões dirigidos a ricos e pobres, servos e príncipes, impactaram-me profundamente.
Todavia, as enormes diferenças
entre a fé protestante e a fé romana já se estabelecem claramente. Não é à toa
que João Calvino descreve Leão Magno nestas palavras: “Ora, ele foi um homem,
tanto erudito e fecundo, quanto ávido de glória e domínio sem medida, mas é
preciso indagar se porventura as igrejas de então deram crédito ao seu
testemunho”. E a resposta é o próprio testemunho da história que, desde cedo,
ainda no tempo de Irineu, já nos mostra duas culturas, duas línguas, dois
mundos díspares e que conseguiram se manter juntos, ou ajuntados, enquanto
puderam: a Igreja do Ocidente e a Igreja do Oriente. Ao mesmo tempo que Leão defendia a
cristologia ortodoxa contra os monofisistas no Concílio de Calcedônia (451), ele rejeitou a decisão desse Concílio sobre a elevação de
Constantinopla ao segundo lugar logo depois de Roma.
As investidas de Leão para se estabelecer como
Primaz da Igreja, até mesmo trazendo para si o título romano de “Sumo Pontífice”
(pontifex maximus), que era o título
do sacerdote de Netuno que resolvia as questões religiosas na antiga Roma, não
encontrou subordinação universal. Toda tentativa foi em direção de estabelecer
o papado como a herança de Pedro, aquilo em torno do que a Igreja encontraria sua
unidade: “negar o papa é negar a Pedro, negar a Pedro é negar a Cristo”,
declarou Leão. Portanto, mesmo quando usa uma linguagem sobre a “unidade da
Igreja” e “comunhão dos santos”, Leão está trazendo para si as prerrogativas
para a sede romana. Na verdade, foi Damásio de Roma (366-84) quem primeiro
declarou sobre Roma a primazia sobre as demais igrejas e o papado como herança
de Pedro. Leão avança, preparando o caminho para Gregório I (540-604).
A despeito desse pano de fundo
histórico, o que me interessa é observar a questão da misericórdia cristã em
seu aspecto mais profundo e que tange o sincretismo. Já notei que, no meu entendimento, a misericórdia cristã foi a grande força destruidora do paganismo (até
mais do que o sangue derramado dos cristãos). E os sermões de Leão são
contundentes nessa área, todavia, há uma motivação contrária à fé reformada: essa misericórdia é uma garantia de salvação! E como o
Cristianismo chegou a esse ponto é o que me interessa particularmente, não
apenas porque saber isso ressaltará as posturas diferentes entre o romanismo e a Reforma,
mas também ajudará a compreender a própria condição da Reforma Protestante nos dias de hoje e os
perigos dos reformados sucumbirem (se é que já não o fizeram) aos seus próprios sincretismos com o quais as diversas culturas sempre pressionam o
Evangelho em cada geração.
Mas não acredito que este blog
seja o espaço para entrar nestes pormenores, então, os publiquei aqui. Como
este espaço é mais para resenhas ou comentários sobre livros que lemos,
gostaria ainda de chamar a atenção para a interpretação de Leão sobre o que
prefiguraria a cena de Simão Cirene ajudando Jesus e a redução dos três dias da
morte de Jesus. Enfim, “Sermões” é mais uma daquelas leituras imperdíveis para
se entender a visão romana de Cristianismo, mas que, por outro lado, ajuda-nos também a compreender a própria Fé Reformada. .
Leia todos os textos que escrevi a partir da leitura de Leão Magno:
Leia todos os textos que escrevi a partir da leitura de Leão Magno:
1) A fé romana comparada à fé reformada a partir dos sermões de Leão Magno (1ª parte);
2) A fé romana comparada à fé reformada a partir dos sermões de Leão Magno (2ª parte);
3) A fé romana comparada à fé reformada a partir dos sermões de Leão Magno (3ª e última parte): julgados pela fé ou pela misericórdia?
2) A fé romana comparada à fé reformada a partir dos sermões de Leão Magno (2ª parte);
3) A fé romana comparada à fé reformada a partir dos sermões de Leão Magno (3ª e última parte): julgados pela fé ou pela misericórdia?
Nenhum comentário:
Postar um comentário