“A indizível diversidade de todos os jogos de linguagem cotidianos não
nos vem à consciência porque as roupas de nossa linguagem tornam tudo igual”,
avisa-nos Wittgenstein. Daí “Investigações Filosóficas” (que é dividida em duas
partes, veja aqui) ser uma obra que vai se debruçar nessa
dissecação do emprego que fazemos de determinadas frases no dia a dia. O que
realmente queremos dizer; se sabemos o que queremos dizer; se é possível o
outro saber ou vivenciar o que estamos comunicando; se percebemos a
dissimulação do outro; enfim, vemos uma obra que está dialogando o tempo todo
com idealistas, empiristas e realistas.
Desde sua primeira obra, Tractatus logico-philosophicus, o
tema central (ou a metafísica de Wittgesntein) é que o que há de mais
importante é exatamente aquilo sobre o que devemos calar. E este é o centro do
“Investigações Filosóficas”. E é muito interessante que aqui ele repita o
argumento de Cassirer (que talvez seja mesmo um projeto da Modernidade): a
rejeição de toda filosofia tradicional por entender que ela seja resultado de
uma limitação da nossa linguagem. No caso de Wittgenstein, era um erro de
lógica da nossa linguagem. Para Cassirer, era uma patologia da nossa linguagem.
Daí vem, para Wittgenstein, que filosofia não é ciência, mas uma atividade de
esclarecimento da linguagem. Contudo, no “Investigações...”, Wittgenstein dirá
que esse erro da linguagem é um feitiço, atordoa-nos e nos distancia do que
realmente interessa, por isso que, nesta obra, o filósofo vai tratar a
filosofia como uma atividade terapêutica. O filósofo trava uma batalha contra a
linguagem!
Não tenho dúvida
que um autor de um livro tão difícil de ler como o Tractatus, foi
fortemente influenciado pelos anos posteriores em que decidiu ser professor
primário e depois jardineiro, antes de retornar à Academia. E este didatismo e
linguagem “provinciana” está ali em “Investigações Filosóficas”, que foi uma
obra publicada dois anos após a morte do filósofo. Todavia, quando lemos
“Investigações...”, fica-se com uma sensação de temas dispersos e não ligados
entre si, como se o filósofo trata-se dos assuntos à medida que surgiam na sua
mente, aleatoriamente. E é exatamente isso mesmo que Wittgenstein confessa: sua
dificuldade de unir o que lhe vem à mente, dar um corpo, uma sistematização à
obra.
Para nossa
Bibliotheca de Semiótica, o que mais nos interessa é o “princípio de uso” de
Wittgenstein nesta obra resenhada. Wittgenstein dizia que não deveríamos pedir
o significado das palavras, mas o seu uso: “Fora do uso, com efeito, um signo
parece morto” e “A significação de uma palavra, de uma expressão é seu uso na
linguagem”. Nada mais atual do que isso nas nossas discussões teológicas ou em
nossos trabalhos de evangelismo: precisamos trazer as pessoas para o “jogo”,
para o contexto, para a cultura bíblica e, sem dúvida alguma, para a cultura
Reformada, explicando as regras do que queremos que elas entendam. E
confirmando o entendimento delas a partir do uso que elas farão com nossas
palavras: “justificação”, “salvação”, “predestinação”, “arrependimento”, etc.
Este é um conceito importantíssimo para nossa Bibliotheca: entender que o uso
que o outro faz de nossas palavras é segundo as regras de um outro jogo,
portanto, precisamos trazê-los para entender, para dominar as regras do “jogo”
bíblico – e isto é feito por meio de um discipulado construído sobre um
trabalho de hábito e educação do nosso
ouvinte. Porém, o missionário, o evangelista, o pregador e qualquer cristão que
queira dar a razão da sua fé só poderão fazer isso se entenderem primeiramente
as regras em que o outro se encontra. Este tipo de postura, por exemplo, irá
ajudar na identificação e na solução de problemas como o
sincretismo.
No campo específico da semiótica,
uma das grandes contribuições de Wittgenstein é escapar ao problema da relação
indissociável entre o significado e o significante ou entre a expressão e o
conteúdo: “Se o senhor N. N. morreu, dizemos que morreu o portador do nome e
não o significado do nome. E seria insensato falar deste modo, porque se o nome
deixasse de ter um significado, não teria sentido dizer ‘o senhor N.N.
morreu’”. Qual a implicação disso? Não é preciso que todos de uma comunidade
concordem com o significado de uma palavra (por exemplo, “casa”) para que
pudéssemos usá-la. Na verdade, a tese principal de Wittgenstein é que existem
diversas gramáticas e que elas se circunscrevem nos mais diferentes aspectos de
nossas vidas.
E como
Wittgenstein atingiu a teologia e, principalmente, a hermenêutica? Wittgenstein
destrona o “eu” como o único validador da comunicação, fugindo do solipsismo e
mostrando que, antes de tudo, a interpretação e a comunicação entre falantes de
uma mesma comunidade é aprender o que dizer, como, onde e quando, isto
é, dominar uma língua é dominar a técnica do jogo. O significado
não está no “eu” ou no intérprete, mas está na interação dessa relação, e esta
interação possui regras.
Poderia ser dito
muitas coisas sobre Wittgenstein, algumas não interessam ao foco dos nossos
estudos como, por exemplo, seu homossexualismo, embora muito das suas lutas
espirituais e a busca por pureza estejam referidas inúmeras vezes em cartas e
testemunhos de amigos. Outras coisas que serão ditas sobre Wittgenstein deverão
aparecer nas resenhas de outros livros. Contudo, gostaria de concluir esta
resenha dizendo que Wittgenstein, no momento em que entrega o manuscrito do
“Investigações...” aos editores, entrega também um prefácio ao livro em que
expressava: “Eu diria: ‘Este livro foi escrito para a glória de Deus’, se hoje
em dia essas palavras não parecessem tão tolas, isto é, se não fossem
mal-interpretadas. Elas significam simplesmente que o livro foi escrito com a
melhor das intenções e que, se não estiver sido escrito com boa vontade, mas
por vaidade ou por outro motivo qualquer, seu autor gostaria de vê-lo
condenado. Não está em seu poder purifica-lo das escórias, na medida em que ele
próprio está longe de ser puro”.
Deixo aqui ainda
uma última e fascinante frase de Wittgenstein: "Se Cristo não ressuscitou,
apodreceu no túmulo como qualquer homem, Ele morreu e apodreceu. Então é um
mestre como qualquer outro, e não pode mais ser de nenhuma ajuda: e estamos de novo
no exílio, sozinhos. Podemos contentar-nos com a sabedoria e a especulação.
Estamos, por assim dizer, no inferno, onde apenas podemos sonhar, separados do
céu como por um teto. Mas, se devo ser verdadeiramente redimido, então preciso
de certeza - não de sabedoria, sonhos, especulação - e essa é a certeza da fé.
A fé é fé naquilo de que precisa o meu coração, a minha alma; não o meu
intelecto especulativo. Porque é a minha alma, com as suas paixões, quase com a
sua carne e o seu sangue, que tem de ser redimida. Talvez se possa dizer: só o
amor pode crer na ressurreição. Ou então: é o amor que crê na
ressurreição".
Para resenha completa da 2ª
parte do livro, clique aqui. O blog "Bibliotheca de
Semiótica" pretende ser um banco de resenhas para interessados e
missionários que trabalham com outras culturas. Assim, é característica da
"Bibliotheca" que, durante os resumos dos livros, eu faça comentários
sobre as ideias do autor, concordando ou refutando, para que o leitor possa
encontrar uma crítica e auxílio para a formação do seu próprio pensamento. Boa
leitura!
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