É possível amar nossos inimigos? Lísis - Platão (série Estética)



                Embora minha leitura de Lísis busque o aspecto da construção da estética platônica, é impossível ficar impassível aos outros temas que são apresentados e desenvolvidos na obra.

                Um dos temas discutidos no livro e que me causou grande surpresa foi o tema do “amigo utilitário”. Há exatamente 9 anos, enquanto fazia o curso do CLM da Missão ALEM, mais precisamente nas aulas de antropologia, fui apresentado a esse tema. É a ideia de que somos amigos de quem tem algo a nos oferecer. Ficamos todos nós, alunos, escandalizados com a ideia de que outros só seriam também nossos amigos, enquanto tivéssemos algo a oferecer a eles.

                Quem são nossos amigos? Analisando de maneira fria e sinceramente, nossos amigos são aqueles que têm algo a nos oferecer. Sejam nossos progenitores, que garantem nossa sobrevivência; seja nossa namorada ou esposa, que nos garantem sentimentos e favores de atenção e sexo; sejam amigos, que nos contemplam com elogios ou críticas, ajudando assim na nossa formação e no encaixe social. Em outras palavras, não há o “amigo gratuito”.

Não é difícil olhar o oposto para se entender melhor o que se fala aqui. Você amaria uma esposa que prefere estar envolvida com outros homens do que com você? Você seria amigo de quem está planejando te roubar e denegrir o seu nome na sociedade? Você daria seu afeto a quem lhe ignora? Como disse, é preciso frieza e sinceridade para enfrentarmos a verdade óbvia dessas perguntas.

Quem pode ser chamado de amigo, quais são as causas da amizade, do que alguém é amigo são os temas da obra de Platão, que tem como principal personagem Sócrates. A “filia” (φιλíα) está na berlinda. A “filia” que possui em grego tantas acepções: gostar, amar, ser amigo, adorar, estimar, querer bem e, veja só, até beijar! Mas é neste diálogo que Platão trás a questão da relação entre o belo e o bem (a chamada kalocagatia: kalos te agátós). Lísis mesmo será descrito como belo e bom. Tudo que é um bem é belo? E tudo o que é belo é um bem? E é aqui que começa uma discussão que se estenderá numa série de outros livros platônicos: o que é belo? A beleza pela beleza? A beleza moral? A beleza moral conjugada com a física? A beleza útil? O objeto ou a pessoa que serve, que por servir, é bela? O que é belo depende do que o causa ou da sua finalidade? Ou que define a beleza é o meio, o seu caráter pedagógico? Enfim, são muitas as perguntas que Platão colocará à mesa em seus livros.

Retorno ao tema do “amigo utilitário”, pois 3 coisas podem ter ocorrido nos últimos anos comigo: 1) mudei da primeira leitura deste livra para cá (li esse diálogo há 18 anos); 2) atentei melhor aos argumentos de Platão, principalmente à luz da Palavra de Deus; e 3) abandonei a concepção negativista e pejorativa associada à palavra “útil”.

Como a gente muda! O meu cristianismo tomou uma nova direção nestes anos, eu amadureci, li mais e, evidentemente, vejo com novos olhos os argumentos de Platão. Nesta última leitura, convencido pela maneira como Platão trata a palavra “útil”, vi que não precisava vê-la carregada de imoralidade. Em outras palavras, dizer que alguém é “útil” para mim não é mais nenhum traço de psicopatia, mas é apenas descrever o óbvio da vida real: amamos aqueles que se empenham em oferecer de si mesmos o seu melhor a nós! Procuramos ser amigos daqueles que se comprometem em ser fiéis, leais, prestativos, sinceros, etc. Ou como Sócrates coloca: amamos a quem nos é familiar. Ou, segundo Tomás de Aquino, amamos quem ama as mesmas coisas que a gente ama e que rejeitas as mesmas coisas que rejeitamos! Ninguém quer ter como amigo um encosto, um sanguessuga, um aproveitador, um vampiro espiritual! Queremos perto de nós pessoas que se comprometam conosco. Nada mais humano e normal do que isso! Assim, aquilo que outrora me escandalizou nos outros e em mim mesmo, hoje já não escandaliza mais.

Contudo, como cristão, ecoou durante toda a leitura do livro o texto de Mateus 5: 43-45. É possível amar os inimigos? Em Lísis, para Sócrates, há uma contradição aqui, pois o inimigo não me é útil! Ele não me ama, ele não se comprometerá comigo, ele não andará uma légua a mais e nem me emprestará a sua capa em noites de frio. Enfim, o inimigo não é alguém com quem eu possa contar. Não há nada nele que me atraia. Ao contrário, o inimigo é sempre alguém suspeito, que não quero e não posso mantê-lo por perto, muitas vezes, até mesmo por uma questão de segurança por minha própria integridade física. Então, para Platão, amar o inimigo é uma aporia. “É impossível alguém ser inimigo do amigo e amigo do inimigo”, dirá Sócrates.  

O problema é que Jesus ordenou ao seu discípulo que devemos amar os nossos inimigos! E aqui fica patente que a “filia” socrática não dá conta desse universo cristão. Não cabe na lógica de Sócrates, mas cabe no ensino de Jesus! E a explicação só pode ser encontrada fora de mim e fora do outro, pois não há nem semelhança e nem familiaridade minha com meu inimigo. Daí Jesus usar outra palavra: ágape! Onde a filia não cobre, não paga a dívida, não vê semelhança e nem utilidade, o ágape se instaura, se manifesta, revela-se.

Jesus me é familiar, é-me próprio, fez-se semelhante a mim, que era inimigo dEle. Por isso, eu farei o que é próprio (familiar) a Jesus: morrer por quem não morreria por mim! Não por causa do outro, mas por causa de Jesus. A resposta a Sócrates, portanto, não está na lógica da erística, que tende à aporia. A resposta a Sócrates está na Cruz de Cristo num amor que chama de amigo a quem é inimigo e o trás para dentro, tornando o inútil em irmão, o inimigo em amigo, o abominável em amável, o filho da Ira em filho de Deus! Ágape é uma palavra que não aparece em Lísis. 

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Após a leitura, classificarei os livros assim:
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