Há muitos anos, eu li dois livros que impressionaram profundamente minha psiquê, deixando marcas indeléveis. São eles “Freud e Jung – sobre a religião” e “Resposta a Jó”. Este causou-me escândalo pela forma como abordou a Bíblia e o cristianismo e aquele me chamou a atenção pela exposição didática com que tratou o tema que dividiu Freud e Jung.
Dois livros que, obviamente, são frutos do seu tempo, ou melhor, que representam a racionalidade iluminista do homem europeu e sua posterior derrocada. Freud representa o homem moderno na sua escolha pela razão e em sua preocupação científica em delimitar suas pesquisas fazendo um recorte na tez do mundo físico: um homem marcado pela filosofia de Descartes, Hegel e Spinoza. Essa mentalidade do Idealismo forjou perenemente o perfil de Freud e seus estudos, além de explicar a gênese da ruptura entre ele e Carl Jung. Por sua vez, a Psicanálise desenvolvida por Jung trouxe ao divã aquilo que os racionalistas rejeitaram: o poder da religiosidade do ser humano. Todavia, não posso me furtar a dizer que a cena mais impactante do livro “Freud e Jung – sobre a religião” foi a narrativa ali feita sobre um sonho que Jung tivera. Ele sonhara que Deus vinha caminhando num campo, um Deus gigante e que se depara com uma basílica, uma igreja cristã e, então, Deus se posiciona sobre a igreja, desce as calças que vestia, coloca-se de cócoras e defeca sobre ela...
Freud defendia que a causa das neuroses encontrava sua gênese na sexualidade, ou melhor, na repressão da libido humana. Insatisfeito em limitar todas as explicações a este campo, Jung começa a questionar seu professor se não poderia haver outras razões escondidas no campo das religiões, dos mitos e da parapsicologia, por exemplo (Carl Jung buscava orientar suas pesquisas na direção do Oculto, interessava-se por sessões mediúnicas e por precognição). Tudo isso, entretanto, era um verdadeiro absurdo para Freud. Enfim, enquanto Freud permaneceu no campo do provável, coube a Jung abrir as portas da percepção da ciência psicanalítica rumo ao improvável. Em “Resposta a Jó”, Jung nos apresenta um Deus – Javé – destituído de consciência, um Deus amoral! Um Deus que, na verdade, aprende com Jó e com os sofrimentos humanos, um Deus construído, um símbolo. Javé é analisado como um Deus que, junto com os homens, “quer fugir da injustiça cega”. E a grande epifania de Deus, para Jung, foi quando a Igreja Católica Romana decreta o dogma da Imaculada Conceição, elevando Maria à semelhança de um deus e entregando a Javé aquilo que lhe faltava: Maria era a Sofia do AT, a peça fundamental para equilibrar a masculinidade e o patriarcalismo da Santíssima Trindade. Diante desta pequena amostra das ideias desenvolvidas no livro de Jung, não é mera coincidência que a Europa apresente hoje um pós-cristianismo que, na verdade, é muito mais um renascer do antigo panteísmo. A decadência da modernidade freudiana é o advento de um panenteísmo pós-moderno revelado pela psicanálise de Jung no inconsciente de todos nós. Eis, então, dois livros que nos servem de ilustração para compreendermos os eventos ocorridos nos últimos dois séculos na Europa e que se estendeu ao Ocidente: a Modernidade e a Pós-modernidade!
Por estes dias, assisti ao filme “Um método perigoso”, que narra exatamente este período de encontro e desencontro entre Freud e Jung e também a paixão intempestiva entre Jung e uma paciente sua, Sabina Spielrein, que se tornará mais tarde psicanalista, especializada em psicologia infantil. Há uma cena nesse filme que ilustra bem o que eu expliquei no parágrafo anterior. Jung questiona Freud se tudo teria que se restringir à sexualidade e se não se poderia pesquisar a metafísica, a parapsicologia, etc. Freud reage frontalmente a essa posição, mas, precisamente naquele momento da discussão entre os dois, o móvel da Biblioteca da casa de Freud dá um grande estalo. Jung diz ao seu professor que sabia que isso iria ocorrer, porque, nas palavras de Jung, enquanto Freud estava reagindo às suas ideias, ele sentira um fogo, uma queimação em seu estômago. Freud, compreendendo que tudo não passara de mera coincidência, ficou escandalizado com as ideias de seu pupilo, contudo Jung insistiu dizendo que o estalo iria acontecer de novo. Dito e feito! Mal terminara de falar, um novo estalo ocorre diante de Freud em sua estante de livros. Posteriormente, numa carta a Jung, Freud atribui o ocorrido a uma enganação, uma farsa forjada por Jung para desmoralizá-lo.
Para Freud, tudo não passava de meras coincidências. Para Jung, coincidências não existiam. As coisas estão todas ligadas; os fatos que não tem conexão aparente estão conectados, assim como havia pessoas que se percebiam convergir em direção a outras por “coincidências” que denunciavam uma unidade espiritual entre elas e a isso Jung dá o nome de sincronicidade. E é com uma ilustração deste conceito junguiano que encerro este meu texto. Após assistir ao filme “Um método perigoso”, fui à biblioteca da minha casa rever os dois livros que abordei aqui. Ao sair da biblioteca, passei pelo quarto das minhas filhas e vi que, encostada à porta, havia uma enorme barata. Peguei a sandália e aproximei-me bem devagarinho. Num gesto típico dos que tem ódio desses seres nojentos, desferi contra ela uma pesadíssima sandaliada. Depois, ergui a sandália e pude ver a famigerada totalmente destruída, esmagada e com seus líquidos viscosos e brancos espalhados pelo chão. Fui ao banheiro pegar o papel higiênico e retirá-la dali, lançando-a à privada. Porém, para minha surpresa, ao retornar alguns segundos após ter saído da cena de meu crime, aquela barata enorme havia simplesmente... sumido! Procurei atrás da porta, pelo quarto, debaixo das camas, ainda que eu soubesse que aquela busca era em vão, porque vira aquele bicho ser totalmente destruído pela violência do meu golpe. A barata desaparecera... ou, talvez, nunca existira. Teria sido precognição ou sincronicidade? Simples coincidência? Tudo isso acontecendo logo naquela manhã em que eu acabara de ler que Jung costumava sentar à mesa da sua sala, passando longas horas conversando com fantasmas...
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