Autran Dourado
212 Páginas
"O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração", adverte o narrador, que aos poucos se confunde com a própria cidade onde mandava o coronel Lucas Procópio Honório Cota. Tratava-se de um homem valente, que impunha respeito pela força e truculência, traços que passavam distante da personalidade de seu filho e herdeiro, João Capistrano. Melancólico, em luta permanente para se livrar do fantasma do pai, João fracassa na política ― sua única chance de se impor na cidade ― e passa o resto de seus dias trancado no sobrado que ergueu como uma espécie de monumento à família. Com o correr dos anos, o casarão vai se impregnando cada vez mais dos fantasmas dos antepassados, que transformam tudo, de objetos a ambientes, em signos da morte. É neste ambiente opressivo e desolado que Rosalina, filha única de Capistrano, vai viver depois da morte dos pais. Solteira, isolada do mundo e tendo como única companhia a empregada Quiquina, que é muda, ela passa seus dias fazendo flores de pano e vagando entre paredes carcomidas e relógios parados. Mas a rotina do sobrado será alterada com a chegada de José Feliciano – ou Juca Passarinho, como é conhecido. O biscateiro vai à cidade em busca de trabalho e acaba entrando aos poucos no universo enigmático da casa e, principalmente, na vida da austera Rosalina. Lançado pelo célebre romancista mineiro em 1967, Ópera dos Mortos foi incluído pela Unesco numa coleção das obras mais representativas da literatura mundial. Autor vencedor do Prêmio Camões (2000) e do Prêmio Machado de Assis (2008)."
2 comentários:
Nos últimos meses, me aventurei pela leitura da ficção mineira, algo negligenciado há muito, e me fazia sentir um senso de injustiça quanto à minha própria terra. Por isso, comecei com Fernando Sabino e o seu “Encontro Marcado” (concluído, e cuja resenha pode ser lida aqui mesmo), ando às voltas com “Crônica da Casa Assassinada”, de Lúcio Cardoso (a conclusão desse demandará ainda um bom tempo) , “Obra Completa”, de Murilo Rubião (em fase de leitura), e “Ópera dos Mortos”. Ah, não posso me esquecer de Luiz Ruffato e o seu “Flores Artificiais” (resenha por aqui, também), e a próxima leitura, já adquirida, de “Verão Tardio”.
“Opera dos Mortos” é considerado o maior romance de Autran Dourado, que é comparado a Guimarães Rosa, de quem ainda não consegui concluir nenhuma leitura, e me é, em algum aspecto, um escritor intragável. Espero mudar de ideia, pois pretendo novas tentativas de leitura dos seus principais livros, e talvez ele se torne digerível. Mas entendo a comparação, já que Rosa é considerado o maior prosista mineiro e, ao lado de Machado de Assis, do Brasil. Mostra a envergadura de Autran Dourado, e um pouco de quem estamos a falar. Escrito em 1967, o livro é o primeiro volume da trilogia cuja sequência se dá com “Lucas Procópio” e “Um Cavalheiro de Antigamente”.
A história se passa no interior mineiro, e tem como principal personagem um Casarão, isso mesmo, onde se desenrolam os conflitos, intrigas e a solidão dos demais personagens. Esses são como vultos, fantasmas, a assombrarem com seus desvios e pecados as paredes, tetos e pisos da construção, numa sequência interminável de feridas expostas e das quais é impossível se esquecer; sem alívio, uma dor interminável. O ressentimento, o orgulho, a amargura áspera, permeia a vida dos ocupantes e o restante da cidade, em um sentimento de culpa sem qualquer perdão. Tudo porque, no passado, a cidade traiu a confiança e boa-fé do patriarca da família Honório Cota, pai de Rosalina, moça que conserva a tradição familiar de isolar-se em casa e evitar, a todo custo, o contato com os demais habitantes da cidade. Do avô, Lucas Procópio, odioso em seu comportamento desumano, frio e egoísta, Rosalina parece herdar a loucura, uma loucura melancólica, trágica, quase inofensiva (a não ser a si mesma), enquanto o ancestral impregnou-se de uma demência maligna, perversa.
Moram no casarão a empregada Quiquinha, uma descendente de escravos e que criou Rosalina, tendo-a por filha. E a chegada do maledicente e preguiçoso e errante Juca Passarinho, exímio caçador, a despeito de ter apenas um olho bom; o outro, era uma névoa branca. Ele se apaixona pela figura nobre, circunspecta e altiva de Rosalina. Com o tempo, angaria alguma simpatia dela e a aversão de Quiquinha. Com o tempo também, as coisas mudam; se de dia o aspecto geral da casa e suas relações é austera, formal e corriqueira, a solidão de Rosalina, que não tem com quem conversar, já que Quiquinha é muda, acaba por “ceder” à bisbilhotice atrevida de Juca, e passava as tardes ouvindo as resenhas da patroa. À noite, o convívio toma ares completamente distinto, fazendo lembrar ao narrador (indistinguível) as diatribes do velho Procópio.
(...)
Continua (...)
O Casarão contém, em seu espaço, duas realidades diferentes, em que as vidas se encontram no limiar de uma tragédia grega. E acaba por consumar-se.
É impossível não relacionar o título da obra com o enredo, no qual se vislumbra a realidade em que os mortos de verdade estão vivos, e tão vivos que impregnam os habitantes da casa com a própria morte; como se a resistência estivesse no estigma de leva-os, os ainda vivos, à morte, de forma a unirem-se a eles. E se os ainda vivos agem como mortos, e os mortos como vivos, nas lembranças, objetos, e condução da vida na velha mansão, ali se enterram, e são enterradas as esperanças, os desejos, as almas dos moradores. Nem mesmo quando a casa é aberta e os habitantes da cidade têm a oportunidade de invadirem os cômodos do Casarão, a tortura, o martírio permanecem como presenças graves em cada parte, cada detalhe, cada som, sem que ninguém se sinta ou esteja livre da mancha a gravar o vestígio da condenação e clausura de todo o povo, dentro ou fora do Casarão. Ele é o centro da sociedade, da atividade, da vida pregressa e futura da cidadezinha.
Ópera dos Mortos é uma grata surpresa. Um livro em que Autran Dourado traça a ponte entre o passado e o presente, e um futuro tão embebido neles que se transforma em “amanhã póstumo”, onde a morte traz da vida outros defuntos.
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