Thomas Mann
Cia das Letras
82 Páginas
"O volume traz ainda Tonio Kröger, narrativa de 1903 que Thomas Mann declarava ser uma de suas favoritas. A novela tem diversos traços autobiográficos e está centrada na relação entre artista e sociedade, um tema muito caro à obra de ficção do escritor, sobretudo nos primeiros trabalhos."
2 comentários:
Nesta novela, temos outro “experimento” de Thomas Mann em busca de um apuro e sentido literários. Vários dos elementos presentes nas suas obras posteriores estão, ainda que incipiente, por aqui: longas reflexões; amores platônicos e inalcançáveis; a futilidade existencial; a mistura étnica; o apelo ao belo, à virtude; a importância das coisas mais corriqueiras e banais; a amizade e a lealdade, ou a perda dela; os conflitos entre pares; e o cruzamento constante entre distintos... em suma, o desafio de viver.
Tudo começa com o jovem Tonio Kröger (cujo nome detestava, por remetê-lo à latinidade indesejada), filho de um cônsul alto, branco, culto, discreto, severo, e figura destacada na cidade; e a mãe, uma mulher sul-americana, morena, inculta e dada a extravagâncias. Os pais são opostos; e o garoto se vê entre os antagonismos deles, sem se dar conta do seu lugar na família, assim como na escola e entre os colegas.
Sendo um aluno medíocre, indiferente aos professores e à direção de ensino, apresenta boletins sofríveis, causando a censura e repreensão do pai, e o descaso da mãe. Refugia-se escrevendo poemas e na amizade (quase o endeusamento) do amigo Hans, um tipo diferente dele: alto, loiro, olhos azuis, causando-lhe a admiração e os ciúmes próprio da amizade. Alguém pode entender o amor de Tonio por Hans como algo físico e carnal, um amor homossexual (infelizmente, se havia o estigma de o homem não poder amar outro homem, como sinal de fraqueza ou afetação [o que dizer do amor de um pai por um filho, ou de um irmão por outro, ou de um amigo por outro? Seria mesmo impossível?], hoje toda forma de amor entre homens tem de ser, quase necessariamente, homossexual. Saímos de um extremo nocivo para outro ainda mais nocivo. Então, qualquer tipo de amor entre homens na literatura, no cinema, teatro ou artes em geral, terá de ser carnal), o que acaba por acontecer efetivamente em “Morte em Veneza”, mas aqui não passaria incólume à coação ideológica. Para a desgraça deste mundo, o amor tem se tornado apenas fluídos e orgasmos, e obsessão por eles.
Tonio nutre uma admiração excessiva, venerável, ao amigo, pois ele era exatamente aquilo que desejaria ser: belo, inteligente, destacado e querido, tanto pelos colegas como pelos professores. Para Tonio, inferior física e intelectualmente, quase um pária, sem ter a simpatia de outro a não ser de Hans, nada mais natural do que a reverência ao amigo (com doses de inveja, diga-se), e aproximar-se daquele que não parece se importar com os seus defeitos ou insignificância, tendo-o por igual.
(Continua...)
(...)
A novela relata momentos marcantes da vida de Tonio, essenciais para a formação do seu caráter e futuro.
Posteriormente, se enamora (platonicamente) por uma colega, a deusa loira, Inge Holm.
Então, de maneira errante e sinuosa, como toda a sua vida, encontramo-lo adulto, e já um escritor com algum reconhecimento. Esse é o seu refúgio, o lugar onde verdadeiramente se vê e se encontra, ainda que tortuoso; no qual Mann faz uma elegia à literatura, e a sua capacidade de redimir, intimamente, o mundo daqueles alijados e insociáveis no mundo. Essa é a única “bênção” vislumbrada por Tonio, em sua acentuada autoexclusão. Ressalto que, como em outros livros, Mann insere elementos autobiográficos em muitos dos seus protagonistas, e aqui não é diferente.
De certa forma, há em Tonio um estranhamento com o mundo “ariano”, dominado por loiros de olhos azuis, enquanto a sua pele morena e olhos escuros o distinguem sobremaneira, isolando-o, fazendo-o não se reconhecer em lugar algum, nem ao lado de ninguém. Anseia as coisas comuns, banais, mas é incapaz destituir-se da pompa e nobreza herdada, acabando por, de alguma maneira, desprezar o ansiado. Mesmo entre os seus, não encontra lugar, vivendo à margem, como um mero observador, passivo. Sua indolência está refletida na relação da sua mãe com o padrasto (casou-se após o falecimento do pai) e a união de Hans e Inge, em sua cerimônia nupcial, as quais não reage, deixando-se sucumbir nelas.
Mann parece demonstrar que o mundo pode ser um campo de alegria, felicidade e vitória, desde que se tenha os predicados e a ordem necessárias. Tonio, um estranho e indesejado, é o próprio caos, o transtorno, a impossibilitar-lhe alcançar o que apenas os “bons” ou predestinados conseguiriam. Resta-lhe as sombras e, ironicamente, descrever a escuridão da própria alma.
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