Cassirer
é um autor requisitadíssimo nos cursos de antropologia, filosofia e linguística
das Universidades brasileiras. Por isso, muitos dos missionários acabam por se
encontrar com ele cedo ou tarde. Contudo, a verdade é que a obra de Cassirer já
é fruto de todas as teorias que também estão presentes e dando corpo à teologia
liberal do século XIX. Assim, não é de se surpreender que tenhamos logo no início
do livro um “breve resumo do conhecimento humano desde o nascedouro da razão até seu
crepúsculo e ressurreição com o advento da pós-modernidade”. Teremos uma
apresentação clara da razão que levou ao surgimento da pós-modernidade, que
tantas consequências nefastas trouxe para a área da teologia e que, até hoje,
está presente em seus desdobramentos.
A
antropologia de Cassirer está fundamentada na filosofia transcendental de Kant,
mas com o agravante de já ser uma filosofia neokantista, que rejeitará qualquer
vínculo com o referente, com o mundo físico, com a realidade. Isto recebeu o
nome de idealismo radical. Assim, a teoria dos símbolos de Cassirer nasce da
pressuposição de que o homem não se relaciona com a realidade, por isso sua
mente cria o símbolo que irá tornar compreensível e dominável o mundo no qual
vivemos. Como fruto dessa teoria dos símbolos neokantiana, Cassirer tem a
grande sacada de tecer sobre o homo
absconditus. Na verdade, se o nosso Deus que nos fala é um Deus absconditus muito mais o será o
homem, que é a sua imagem. Por isso a natureza tão obscura da religião: ela é
um símbolo que trata de símbolos de símbolos. Mas para Cassirer, não apenas a
religião e a teologia medievais falham na descrição do que é o homem, mas a
própria metafísica clássica, pois, para o próprio Aristóteles, descrever o
homem pelas categorias acidentais nada dizem do seu ser, pois os acidentes
aristotélicos diziam das características mutáveis do ser. Daí a necessidade do
símbolo.
É
interessante notar que, uma vez atribuída a origem da ideia evolucionista a Aristóteles,
como o faz Cassirer, é dado pelo evolucionismo darwiniano, segundo percebo eu,
uma justificativa científica e filosófica para o panteísmo e, principalmente,
para o panenteísmo tão difundido na teologia liberal do século XX, uma vez que
as fronteiras entre as espécies foram derrubadas e que todas são, na biologia
darwinista, um desenvolvimento de uma mesma força vital contínua e presente em
todos os seres vivos, uma força que nos une e ultrapassa.
No
ponto do livro em que são tratados o espaço e o tempo, é impressionante notar como as
culturas verdadeiramente veem essas categorias de formas tão diversas. Na
cultura em que trabalhei, por exemplo, foi interessante notar que a Escola era um fator de imposição da concepção do “mapa geográfico” forçando a cultura a
ver coisas que ela não via e a tornar irrelevantes detalhes essenciais na geografia simbólica do povo. Não somente o espaço simbólico da aldeia vem sendo transformado pela
Escola, mas também o tempo simbólico (embora haja em algumas iniciativas
escolares a tentativa de se perceber e respeitar o tempo e o espaço da
cultura). Todavia, com o inevitável encontro da cultura majoritária com essas
culturas indígenas, seja com a ida da escola e da TV para a aldeia, seja dos
próprios indígenas vindos para a cidade, a dissolução do simbólico é um fato e
o missionário precisa, mais do que nunca, ser a ponte entre esses dois
universos, ajudando e apoiando os povos minoritários no resgate, na transição e na
compreensão dos novos símbolos também.
Acrescentaria
ainda, apenas como curiosidade irônica na abordagem de Cassirer sobre a matemática simbólica, que, diante de um Império como o da
Babilônia, que tanto desenvolveu as medidas de peso e quantidade, foi com
palavras de medição e peso que Deus anunciou o fim do Império no livro de Daniel.
A
teoria dos símbolos de Cassirer é clara: o símbolo, o possível - eis o que
diferencia o ser humano dos animais. E esta é uma característica da nossa mente
que é derivada da mente de Deus. Deus é ato puro, Deus não trabalha com
símbolos. O que ele pensa é criado. O homem não. Ele pode transcender e criar
imagens, símbolos a partir dos dados oferecidos pela realidade, ele pode
imaginar mundos possíveis e que jamais encontrariam respaldo na realidade e
que, como o exemplo dado no livro sobre Galileo, podem mesmo parecer uma contradição com a
realidade.
Enfim,
a crítica que podemos fazer a Cassirer é a mesma que se deve fazer ao
neokantismo (a filosofia do não realismo), que é uma concepção que radicaliza a
ideia de Kant. O idealismo radical do neokantismo afirma que as categorias usadas pela mente para processar a
experiência são arbitrárias (Kant as pensava necessárias). Parece, portanto,
que a teoria de símbolos de Cassirer nos leva a um círculo vicioso, pois,
propondo o símbolo como a saída para a anarquia do pensamento atestada pela
crise da Modernidade, ele finda por nos dar uma saída artificial e criada pelo
próprio homem. Assim, ficamos presos numa teoria subjetiva que abrirá uma crise novamente
à interpretação tanto do homem quanto do mundo.
O objetivo do autor foi dar ao público inglês e
americano uma tradução da famosa obra “Filosofia das formas simbólicas”,
contudo, nas palavras do próprio autor, ele não conseguiu traduzir para o
inglês de uma maneira satisfatória. Assim, resolveu escrever este outro livro. E isso
talvez explique sua linguagem muito mais didática e compreensível. A obra de
Cassirer está dividida em duas partes e aqui apresento a resenha da 1ª parte:
“Que é o homem?”. Para a resenha completa da 1ª parte do livro, clique aqui. Boa leitura!
3 comentários:
ótimo texto, bastante esclarecedor para quem é cristão e estudioso da Antropologia.
ótimo texto, bem esclarecedor para os cristãos que estudam Antropologia.
A minha edição para esta resenha é a publicação em espanhol de 1967, Fondo de Cultura Ecónomica, México. Contudo, acabei de ser informado que há uma edição em português, "Ensaio sobre o homem", da Martins Fontes.
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