Thomas Mann
Editora Saraiva
70 Páginas
"'Morte em Veneza' aborda o fascínio mortal que a beleza física pode exercer. Gustav von Aschenbach é um escritor que, diante da pouca aceitação de suas últimas obras, decide viajar para Veneza para descansar. Já na cidade, depara-se com o belo inatingível, a perfeição estética do adolescente Tadzio, por quem se apaixona platonicamente. O velho escritor passa a vagar pelos decadentes, inspiradores e famosos canais venezianos, seus dias girando em torno da visão do rapaz, o que o impede de dar atenção aos boatos que circulam a respeito da epidemia de cólera que assola a cidade."
2 comentários:
“Morte em Veneza” é um livro, no mínimo intrigante. A prosa suave, plácida e incrivelmente detalhista de Mann, o torna em um dos escritores mais caudais da história. Sua obra, composta de poucos, mas densos livros (tanto no volume, quanto na trama e personagens) não tem cortes repentinos e situações bombásticas, como boa parte dos escritores modernos parece querer esculpir seus livros. Ela vai em uma crescente, lenta e cuidadosamente se desenvolvendo, até que o leitor se vê irremediavelmente fisgado, e incapaz de largar o livro, por maior que seja.
Este, contudo, seria uma exceção, ao menos quanto ao seu tamanho. É uma novela de pouco mais de noventa páginas, que se pode ler de uma sentada, o que não seria aconselhável. Mas, do que trata o livro? Ele fala da beleza, sobretudo da beleza perdida pelo protagonista (um homem de meia-idade), escritor famoso e laureado, que está com a vida consolidada no âmbito profissional, pessoal e familiar, e em busca de novos ares, a fim de injetar um novo rumo a sua carreira.
Em férias, von Aschenback, chega a Veneza, e encontra, no hotel, o jovem Tadzio (jovem é eufemismo, pois o rapaz é quase uma criança), um garoto polonês de beleza arrebatadora, causando assombro ao escritor. Aschenback sente-se seduzido pela graça e encantado com a perfeição escultural do jovem, tornando as suas férias em uma obsessiva perseguição visual, no vislumbre delirante de um amor platônico, na intocabilidade do tato, no desejo ilícito, na reprovável insídia de acalentar o amor infame.
Mann retrata os dramas e ensejos do velho escritor, mostrando os seus conflitos morais e íntimos, a insanidade e vergonha com que ele se avalia, entretanto, incapaz de detê-lo do desejo imperfeito do amor indigno. Um amor fadado à morte, e que consome a alma de Aschenback. Não há paz, nem consolo, ou alívio na atormentada cobiça, pelo delito de um adulto ansiando o amor de uma criança. Nem mesmo as cenas mais pueris, em que os infantes se envolvem, são o alerta para demover o escritor da sua obsessão. O ridículo se vislumbra como um fato mais que comprovado. O crime, às portas da concepção, ao menos na mente perturbada do escritor.
Mann constrói um livro que, pela mão de outro soaria apelativo, quando não um pastiche de dramalhão gay. Há momentos de ternura, de cumplicidade e afeição, provando que até mesmo os loucos e doentes têm a sua porção sensibilidade. Mas ela não absolve Aschenback, nem cria empatia no leitor, por mais tortuoso seja o seu dilema.
Quando o barbeiro se oferece para “repaginar” o visual de Aschenback, pintando-lhe os cabelos grisalhos, maquiando-o para esconder-lhe a idade, perfumando-o, ele se apercebe do ridículo em que se apresenta, mas o desejo suplanta-lhe a razão e o bom senso, cedendo ao escárnio, a zombar-se de si mesmo.
Continua...
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O texto de Mann, como sempre primoroso, serve como o retrato de uma causa indigna, de uma defesa não sustentável, mesmo que se possa, em algum sentido, se compadecer da aflição romântica do protagonista (pela qual muitos de nós já passamos também; afinal, quem não morreu de amores ao menos uma vez?), ela não traz enlevo, mas a certeza de ser imoral e perversa. Mesmo que Mann discuta a perda da beleza, da juventude, e a sua busca na beleza e juventude alheia, a narrativa nos remete à pedofilia, o controle do mais forte, a animalidade humana. Se no início havia o fascínio pela formosura, remetendo-o à perfeição da criação humana, e o próprio Imago Dei presente no homem, ao espírito que eleva o homem até o ser divino, ele se transforma num desejo indigno, perscrutador, maligno.
É possível até mesmo se discutir a arte pela arte, e encontrar vários elementos simbólicos na narrativa de “Morte em Veneza”, mas a despeito da capacidade de Mann de analisar e abordar praticamente tudo em suas obras, não há como não sentir uma aversão pelos sentimentos importunos, a ideia fixa de Ashenback por Tadzio.
Mann traça com maestria as fraquezas de um homem entregue a si mesmo e a sua impotência: a de ver o belo sem desejar corrompê-lo.
E a morte não poderia se dar em outro lugar, a não ser na idílica, angustiante e fatal Veneza.
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