“Qual a ideia por trás do fato
social?” é a perspectiva mais impactante para a antropologia depois dos anos 60
e que inovou num campo dominado pelo estruturalismo e pelo neoevolucionismo na
Academia.
Clifford Geertz é o antropólogo
americano que apresentou suas teorias em duas frentes para análises de Campo:
por um lado, o estudo simbólico atrás do significado cultural que se revela no
estudo das cosmogonias, mitos, ritos e hierarquias presentes na economia diária
do povo; por outro, o estudo hermenêutico, buscando a interpretação por trás
dos fatos sociais do povo.
A vertente fundada por Geertz
ficou conhecida como Antropologia hermenêutica ou interpretativa. O
antropólogo, para Geertz, deve ir muito além da descrição dos fatos sociais:
ele deve buscar os significados por trás desses fatos. Mas o que mais tem me
atraído às teorias de Geertz é o fato da importância que ele dá à Cultura, especialmente
às culturas complexas, multifacetadas e multiétnicas e plurirreligiosas. Porém,
ao lado dessa perspectiva cultural, ele coaduna o papel do indivíduo como
sujeito histórico, agente histórico de transformação. Além disso, Geertz trás
para a Antropologia o auxílio da psicologia, da literatura, da filosofia e da
semiótica.
“A vida entre os antros e outros
ensaios”, da Editora Vozes, publicado em 2015, na Coleção Antropologia, mostra
Geertz em toda sua dimensão e inteligência. Ele “falava e lia em árabe, dois ou
três dos incontáveis dialetos indonésios, alemão, francês, espanhol, uma ou
duas frases em japonês”. A especialidade dele, se assim posso expressar, é o
mundo islâmico, o mundo árabe e a diferença entre um e outro. Os seus escritos
discorrem sobre povos que foram atingidos pelo Islã, mas que guardam em si a
tensão de ver conviver em seus territórios e governos tanto cristãos, como protestantes,
católicos, hindus, mórmons e as muitíssimas expressões religiosas nativas.
Aqui, nesse ponto, minha atração torna-se evidente, pois muito mais completo e
investigador é Geertz do que, por exemplo, Lévi-Strauss, quando tentamos
trabalhar com as realidades indígenas no Brasil, realidades também sob a tensão
de uma sociedade plural.
Dentre os vários ensaios
presentes no livro, quero destacar, primeiramente, todos os que descrevem
Marrocos e a Indonésia, alvos de décadas de pesquisa de Geertz e que me
deixaram com aquela sensação de “inteligência humilhada”, pois não há assunto
algum na minha vida pessoal ou acadêmica que eu domine de maneira tão vasta e
profunda como Geertz o faz quando se debruça a entender as sociedades árabes e
muçulmanas. O conhecimento histórico, religioso, social, político dessas
sociedades revelam um antropólogo estudioso, dedicado e profundo.
O ensaio sobre Malinowski,
importantíssimo antropólogo da virada do século XIX para o século XX, mas que
Geertz revela algo um tanto inusitado de sua personalidade: sua profunda
antipatia e preconceito com o Campo no qual atuava. Malinowski deixou diários
em que narra toda sua falta de tato e sua relação nada antropológica com os
povos em que trabalhava e que, surpreendentemente, superou sua falta de
identificação com o povo sendo incansável na sua disciplina diária de pesquisa.
Ele produziu mais de 2.500 páginas de pesquisa fazendo exatamente o contrário
do que tanto é ensinado hoje nas Academias – em nada se identificando com o
nativo.
Outro ensaio, “Sobre a devastação
da Amazônia”, muito especial para mim, pois é sobre um dos livros mais
impressionantes que já li acerca das atrocidades cometidas contra povos
indígenas, chamado “Trevas no Eldorado”, de Patrick Tierney, fruto de uma
pesquisa que durou mais de dez anos e que trouxe um escândalo para a Associação
Americana de Antropologia ao divulgar os usos e abusos de antropólogos e
cientistas na dizimação do povo Ianomâmi na Venezuela, narrando experiências de
eugenia e aliciamento sexual. O título do livro produzido pela Ed. Vozes remete
exatamente a este ensaio específico:
Particularmente, o ensaio mais
importante é o “Mudando objetivos, movendo alvos”. É aqui que Geertz faz uma
apresentação do seu método de trabalho e suas teorias simbólicas e
hermenêuticas. Mostrando suas influências – C.S. Pierce, Ferdinand Saussure,
Gottlob Frege e Roman Jakobson – Geertz narra seu pensamento sobre os “sistemas
de significado” ou “sistemas culturais” para se compreender e ordenar a
comparação das religiões. A primeira linha de pensamento, portanto, é a “autonomia
de significado”.
Diz Geertz que “significado não é
um tema subjetivo, privado, pessoal, “na cabeça”. É um tema público e social,
algo construído no fluxo da vida. Trafegamos por sinais em plein air, no mundo onde está a ação; e é nesse trafegar que o significado
é produzido”. Aqui é importante notar que o significado é “falado” (não
necessariamente pela boca), é narrado nos gestos, comportamentos, na condução
para significar.
A segunda linha de pensamento é “a de que o significado é materialmente
incorporado, de que ele é (...)formado, transmitido, compreendido,
emblematizado, expresso, comunicado, por meio de signos ponderáveis,
perceptíveis e compreensíveis; dispositivos simbólicos, ritos de passagem ou
encenações da paixão, equações diferenciais ou provas de impossibilidade, que
são seus veículos”. Geertz conclui este ponto chamando a atenção para o fato de
que o que torna um dispositivo “religioso” não é sua estrutura, mas seu uso.
Assim, o antropólogo precisa estar atento a todo esse “equipamento para viver” construído
pela cultura.
Finalmente, a terceira linha é a
que aquilo que verdadeiramente importa, que, de fato, interessa e que vai
revelar esse “equipamento para viver” é quando “nossos recursos culturais
falham, ou começam a falhar. É no meio da confusão insolúvel, do sofrimento
inelutável, do mal invencível, que veremos a religiosidade intervir.
Para o parágrafo anterior, é caso
comum já no trabalho com povos animistas que, até mesmo pastores oriundos do
animismo, quando se deparam com situações extremas – doença incurável de
filhos, por exemplo – na madrugada, longe dos olhos de suas congregações, se
dirigem aos antigos pajés e feiticeiros para solucionar seus problemas. Enfim,
como antropólogos cristãos e missionários precisamos estar atentos a esses
limites, pois é ali que se manifestará, verdadeiramente, a apreensão ou não da
cosmovisão evangélica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário