Confissões de um jovem romancista - Umberto Eco


“Confissões de um jovem romancista”, de Umberto Eco, é uma armadilha. Não leia! São quatro ensaios que fisgam você, leitor desavisado, com o intuito de fazer com que você se apaixone pelo autor (ou se apaixone mais ainda) e fazer com que você deseje descontroladamente ler seus romances (ou reler)!

Reler seus romances... Durante a leitura encantada desse pequenino livro de apenas 152 páginas, dei-me conta que nunca lera os romances de Umberto Eco. Apenas lera seus textos técnicos de Semiótica e linguística. Nunca? Claro que li. Há muito tempo, li Baudolino e a A misteriosa chama da Rainha Loana. Mas... nunca li mais nada de seus romances. Nem o primeiro e mais famoso deles, O nome da rosa. Vi o filme. Mas nunca li o livro! Como pode ser? 

A lista dos romances de Umberto Eco (sequestrada na wikipedia) começa no O nome da rosa (Il nome della rosa, 1980), seguido de O Pêndulo de Foucault (Il pendolo di Foucault,1988); A ilha do dia anterior (L'isola del giorno prima, 1994); Baudolino (Baudolino, 2000); A misteriosa chama da rainha Loana (La misteriosa fiamma della regina Loana, 2004); O Cemitério de Praga (Il cimitero di Praga), 2011; e seu último romance, O número zero, 2015.

Da lista do parágrafo anterior, apenas li dois livros e o livro que apresento aqui, uma explicação deliciosa de como eles foram urdidos pelo autor, dá essa vontade doida de parar tudo o que a gente está fazendo e colocar em dia essa lista de romances. Que vergonha confessar aqui a minha queda nessa armadilha... Já baixei O nome da rosa no meu kindle... Meu Senhor, sinto que estou iniciando uma longa jornada de leitura nos romances do meu professor de semiótica predileto! Ai, preciso organizar meu tempo em listas, citar meus segundos, minutos, somar as chances, meus ensejos, ocasiões e oportunidades e tomar a decisão prazerosa de acordar uma hora mais cedo e dormir uma hora mais tarde! rsrsrs

Mas quais os livros de Umberto Eco que eu li? Como disse, exatamente aqueles que tratam da semiótica. A lista é bem maior dos escritos dele nas áreas da filosofia, linguística e arte (lista sequestrada da wikipedia):

Obra aberta (1962)
Diário mínimo (1963)
Apocalípticos e integrados (1964)
A definição da arte (1968)
A estrutura ausente (1968)
As formas do conteúdo (1971)
Mentiras que parecem verdades (1972) (coautoria de Marisa Bonazzi)
O super-homem de massa (1978)
Lector in fábula (1979)
A semiotic Landscape. Panorama sémiotique. Proceedings of the Ist Congress of the International Association for Semiotic Studies (1979) (coautoria de Seymour Chatman e Jean-Marie Klinkenberg).
Viagem na irrealidade cotidiana (1983)
O conceito de texto (1984)
Semiótica e filosofia da linguagem (1984)
Sobre o espelho e outros ensaios (1985)
Arte e beleza na estética medieval (1987)
Os limites da interpretação (1990)
O signo de três (1991) (coautoria de Thomas A. Sebeok)
Segundo diário mínimo (1992)
Interpretação e superinterpretação (1992)
Seis passeios pelos bosques da ficção (1994)
Como se faz uma tese (1995)
Kant e o ornitorrinco (1997)
Cinco escritos morais (1997)
Entre a mentira e a ironia (1998)
Em que creem os que não creem? (1999) (coautoria de Carlo Maria Martini)
A busca da língua perfeita (2001)
Sobre a literatura (2002)
Quase a mesma coisa (2003)
História da beleza (2004) (organização)
La production des signes (2005 em francês)
Le signe (2005; em francês)
Storia della Brutezza (2007). Em Portugal, traduzido como História do feio, e, no Brasil, como História da Feiura.
Dall'albero al labirinto. No Brasil, como Da Árvore ao Labirinto (2007)
A vertigem das listas (2009)
Não contem com o fim do livro (2010) (co-autoria de Jean-Claude Carrière)
História das Terras e Lugares Lendários (2013)

Se eu não me engano, da lista acima, li apenas os livros que estão em destaque. Parece que citei pelo menos 4 listas só neste meu texto: 1) a lista dos romances escritos por Umberto Eco; 2) a lista dos romances que li; 3) a lista dos ensaios escritos; e, finalmente, a lista dos ensaios que li. Obviamente, que surgem outras duas listas negativas aqui, pois para cada lista criada do que li, subentende-se uma outra feita dos que não li. Poderia fazer mais listas: 1) os romances que quero ler de Umberto Eco; 2) os romances que não faço questão de ler (mentira, esta lista não existe); 3) os ensaios que anseio desfrutar; 4) os ensaios que jamais lerei (mentira, esta lista também não existe, a não ser que eu morra antes de cumprir a tarefa). Que outras listas posso fazer? Dos ensaios que li, quais que mais gostei? Isto seria uma outra lista também. 

Enfim, por que estou fazendo isso? Por que estou criando essas infinitas listas? O último ensaio do livro “Confissões de um jovem romancista” é precisamente sobre o prazer do autor em ler e fazer listas. E devo confessar: é uma delícia viciante! Boa leitura!

A mulher sem pecado (Nelson Rodrigues)


A 1ª peça de teatro publicada por Nelson Rodrigues. E na esteira dessa leitura tenho lido todas as demais peças desse que foi chamado de tarado, anjo pornográfico e até de “o Marquês de Sade dos Trópicos”!

Esta peça em 3 atos já anuncia tudo aquilo que ainda será tratado em profundidade por Nelson Rodrigues: incesto, traição, hipocrisia, loucura, patologia e psicopatias mil! Todos esses temas e muitos outros afloram dos textos de Nelson. Se eu gostei desta peça? Amei! Vi nela todas as nossas doenças encobertas pelo véu de nossas hipocrisias.

O que aprendo com o Nelson? Teologicamente, a constatação teatral de nossa natureza totalmente depravada. Politicamente? Artisticamente? Que nada é neutro, nem à esquerda e nem à direita! Somos todos pecadores.

Assim como ocorreu no último livro cristão conservador que li, Pensamentos secretos..., que mostra que há uma direita religiosa que carece de ser evangelizada, agora em Nelson Rodrigues, vejo que há uma direita que pode se apresentar fora do pacote direitista! Por mais contraditório que pareça, mas a direita brasileira sofre da mesma mentalidade de pacote imposta pela esquerda: ou você compra o ideário completo do menu ou você será tratado como “esquerda infiltrada”!

Nelson Rodrigues é um desses que não se deixa limitar pelas “definições definidas”, rótulos cerceadores, conceitos impostos. Artisticamente, ousou explorar a sexualidade pervertida em suas peças, mas, para a surpresa de muitos, fora de seus textos era um conservador, anticomunista e defensor das tradições e costumes da família brasileira. Há uma explicação? Há! Todavia, tratarei de esmiuçar Nelson Rodrigues noutro texto.

Agora limito-me a dizer que tanto Nelson Rodrigues como Gilberto Freyre foram conservadores, anticomunistas, todavia execrados e deixados de lado intelectualmente tanto pela esquerda como pela direita (ou pela burguesia, como gostava de dizer o próprio Nelson). E mesmo como conservadores e admiradores um do outro, Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre tinham visões de mundo diferentes sobre a formação do homem brasileiro e nossa antropologia nacional. E aqui é um dos pontos que me chama a atenção em Nelson. Enquanto que para Gilberto Freyre, o Brasil era uma democracia racial, Nelson Rodrigues via no Brasil um país totalmente racista, onde até o negro não gosta do negro (leia a assustadora peça “O anjo negro”)!

O Brasil tem sido dominado, recentemente, por um “avivamento conservador”. Muitos têm se colocado como de direita e apresentado suas ideias em oposição às postulações da hegemônica esquerda brasileira. O que venho observando, contudo, é que dentro desse movimento “conservador” quem não fecha o pacote não pode ser considerado parte desse grupo. Assim, um seleto grupo de “católicos monarquistas” têm se apresentado como os únicos verdadeiros representantes de uma legítima direita conservadora. Outros restringem o pensamento conservador aos usos e bons costumes de uma elite, de uma aristocracia, de um modelo de família e comportamento como critérios para se determinar quem é isso ou quem é aquilo.

É em meio a essa cultura do arroto que vejo hoje no Brasil, de um arroto conservador, que encontro no passado recente dois personagens, Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre, que teriam sido lançados no ostracismo por essa nossa direita de facebook, se hoje estivessem produzindo as obras produzidas naquele tempo. Enfim, temos muito o que aprender, porque, nas palavras de um sábio indígena amigo meu, “posso ser o que você é sem deixar de ser quem eu sou” – eis uma preciosa lição a uma direita que só aceita o que for espelho. Viva Nelson Rodrigues!

O Demônio da Cidade Branca [***]





Erik Larson
Editora Intrínseca
448 Páginas




"No final do século XIX os Estados Unidos eram uma nação jovem e orgulhosa, ávida por afirmar seu lugar entre as maiores potências mundiais. Nesse contexto, a Feira de Chicago de 1893 teve papel fundamental: com o objetivo de apresentar a maior e mais impressionante exposição de inovações científicas e tecnológicas já idealizada, coube ao arquiteto Daniel Burnham, famoso por projetar alguns dos edifícios mais conhecidos do mundo, a difícil tarefa de transformar uma área desolada em um lugar de magnífica beleza: a Cidade Branca. Reunindo as mais importantes mentes da época, Burnham enfrentou o mau clima, tragédias e o tempo escasso para construir a enorme estrutura da feira.


A poucas quadras dali, outro homem igualmente determinado, H. H. Holmes, estava às voltas com mais uma obra grandiosa, um prédio estranho e complexo. Nomeado Hotel da Feira Mundial, o lugar era na verdade um palácio de tortura, para o qual Holmes atraiu dezenas, talvez centenas de pessoas. Autor de crimes inimagináveis, ele ficou conhecido como possivelmente o primeiro serial killer da história americana.

Separados, os feitos de Burnham e Holmes são fascinantes por si só. Examinadas juntas, porém, suas histórias se tornam ainda mais impressionantes e oferecem uma poderosa metáfora das forças opostas que fizeram do século XX ao mesmo tempo um período de avanços monumentais e de crueldades imensuráveis.

Combinando uma pesquisa meticulosa com a narrativa envolvente que lhe é característica, Erik Larson escreveu um suspense arrebatador, que se torna ainda mais assustador por retratar acontecimentos reais.

Premiado com um Edgar Award e finalista do National Book Award, O demônio na Cidade Branca foi publicado pela primeira vez no Brasil em 2005 e agora é relançado pela Intrínseca.

Os direitos cinematográficos do livro foram adquiridos por Leonardo DiCaprio, que divulgou planos de interpretar ele próprio o assassino H. H. Holmes."


“Uma história real mais bizarra do que qualquer obra de ficção.” The New York Times



Pensamentos secretos de uma convertida improvável (Rosária Champagne Butterfield)

“Pensamentos secretos de uma convertida improvável” é um livro que me levou diversas vezes, durante a leitura, de volta ao tempo da minha faculdade em Brasília e, mais precisamente, à época da minha conversão. Não apenas porque o ambiente da nossa conversão foi semelhante, ambos estávamos na Academia, ela como professora e eu como aluno, mas também o ambiente sexual em que andávamos era parecido.

Na verdade, como os livros que leio me levam a muitas reflexões pessoais, tanto sobre o meu trabalho missionário como sobre minha vida pessoal também, não consigo escrever sobre algo sem compartilhar como que aquela leitura me atingiu. Escrevo para não esquecer os diálogos que tive com o livro: o que concordei, o que não concordei, o que mudou dentro de mim e o que vai ser diferente dali para frente. Livros causam isso em mim.

Por que estou escrevendo isso? Porque, seguindo a linha do que disse no parágrafo anterior, escrevi uma resenha (será que posso chamar esses escritos de resenha?) de duas folhas sobre este livro. Contudo, apaguei tudo! Por duas razões. A primeira porque muitas ideias que escrevi e que foram instigadas pela leitura do livro, mesmo que fossem coisas que já vinha pensando há um certo tempo, são reflexões ainda muito cruas. A segunda razão é que me vi escrevendo coisas muito, muito pessoais, porque, como disse, o ambiente de conversão da autora do livro foi muito semelhante ao meu. E mesmo que eu tenha uma facilidade enorme de escrever sobre minha própria vida (certa vez, alguém me disse isso sobre as coisas que eu escrevo), de repente, me fiz a mesma indagação da Rosária no livro: por que escrever sobre a nossa própria vida?

Escrever sobre nós mesmos é sempre um risco. Quem fala de si se torna vulnerável e se coloca na mão de pessoas estranhas. Mesmo os cristãos são muito estranhos. A autora teve que enfrentar igrejas que a colocaram de lado e que não receberam o marido dela como pastor, por causa da vida pregressa dela. Você acredita nisso? É como se as igrejas recusassem a Zaqueu por ter sido corrupto ou a Paulo por ter sido assassino. Igrejas e pessoas que se dizem cristãs!!!

Hoje já vivi o suficiente no meio evangélico para entender como, infelizmente, o sistema funciona em muitos desses “lugares de Graça”. Eu mesmo ouvi, nestes dias, um líder de uma igreja falar do prejuízo que é quando a igreja local recebe pessoas convertidas que vêm do mundo. Isso mesmo que você está lendo!!! Na ótica dele, nós que viemos do mundo e não fomos criados dentro da Igreja trazemos muitas coisas complicadas para as igrejas locais... Para ele, e ele me disse isso com todas as letras, a igreja deve crescer vegetativamente! É o mais saudável para ela!

Eu queria ter nascido numa família evangélica. Queria ter sido ensinado desde criança no caminho em que deveria andar. Eu tenho uma inveja santa de quem nunca conheceu o mundo, sendo abençoado pela educação na igreja. E tenho também um orgulho, orgulho mesmo, das minhas filhas que estão tendo o que eu não tive: uma família da Aliança! Sempre digo que, se eu soubesse que a vida com Cristo é que é vida de verdade, eu teria me convertido muito, mas muito antes! Todavia, obviamente, Deus não quis que fosse assim.

Rosária escreve isso no livro (e hoje eu sei que é verdade), que muitos crentes não querem saber do que Cristo fez por nós, enquanto outros, dentro das igrejas, querem apenas usar desses testemunhos como propaganda de suas denominações, mas não nos querem convivendo entre eles. Por outro lado, há os mercenários adoradores de si mesmos, eu sei, e que buscam holofotes, usando as igrejas como palcos de um circo de horrores para divulgação bizarra de si mesmos. Tudo isso é muito sério e fala muito sobre o tipo de igreja que temos plantado. O que me leva a entender ainda mais que não só a esquerda materialista e pragmática precisa ser evangelizada, mas, indubitavelmente, há uma direita religiosa e hipócrita que, de fato, não conhece a Graça de Deus - e essa exposição é um dos pontos altos do livro para mim!

O livro da Rosária me fez pensar muito em muitas coisas. Muitas que não convém falar sobre elas ainda. Outras que me ajudaram a entender melhor problemas importantes que acontecem no meio missionário, mas, pelo menos por enquanto, também devo guardar no meu coração somente. Assim, fica o convite para que você possa ler esse livro desafiador e que o Espírito Santo sopre sobre você como tem soprado sobre mim e sobre a minha família.

Para adquirir o livro: 
https://editoramonergismo.com.br/products/pensamentos-secretos-de-uma-convertida-improvavel

Henderson, o Rei da Chuva (*)




Saul Below
Cia das Letras
456 Páginas


Eugene Henderson é um homem complexo e em plena crise de meia-idade, o que agrava um temperamento turbulento de tendências suicidas. Riquíssimo, descendente de figuras de proa da história dos Estados Unidos, ex-combatente da Segunda Guerra ferido e condecorado, depois de dois casamentos e um punhado de filhos, de conflitos com parentes e vizinhos, de dores de dente crônicas e de incontáveis bebedeiras, ele decide romper com seu passado e empreender uma virada existencial. Parte então para a África, em busca de um novo sentido para a vida. Animado pelo desejo de fazer o bem em meio a tribos afastadas do contato com a civilização moderna, Henderson primeiro se fixa entre os Arnewi e depois entre os Wariri, povos contrastantes que só possuem em comum uma crônica falta de água para a lavoura e o gado. 

Demonstrando um extraordinário domínio da narração em primeira pessoa, Bellow relata pela voz ao mesmo tempo exasperada e divertida do próprio Henderson os desajustes entre o racionalismo pragmático do personagem e uma África exótica, remota e insondável. Com alguma licença, as aventuras do voluntarioso protagonista podem ser lidas como uma variação irônica e bem-humorada, mas não menos humana, do confronto entre a civilização ocidental e a África selvagem encenado por Joseph Conrad em Coração das trevas .


Porasy e Jegwaká - Vânia P. S. Hu'yju

Tenho tido o privilégio de, há mais de 6 anos, dar uma disciplina que visa a formação e capacitação de missionários transculturais: “Comunicação Transcultural e Contextualização”. E em determinado ponto da disciplina sempre oriento os alunos a olharem para as artes, as expressões artísticas do povo para ouvir delas a cosmovisão que o povo tem acerca da vida.

Assim que cheguei ao Xingu (não como missionário e nem como Pastor, porque não se entrava lá dessa maneira) como professor de Gramática da Língua Portuguesa, um indígena que logo se tornou um grande amigo veio me mostrar um livro com os mitos da Região. Folheando as páginas cheias de gravuras, de repente ele aponta o dedo e diz este é o “Jesus dos brancos”. Ao ouvir isso, fiquei com cara de abestalhado, mas não disse nada, apenas pedi o livro emprestado. Em casa, busquei a gravura que ele havia apontado e a história que estava ali. A gravura e a história se referiam a Taungue, um indígena mítico, cujas histórias de fundação do povo giravam ao redor dele. O problema é que Taungue era mentiroso, trapaceiro e enganador naquelas narrativas míticas da cultura. Como, então, associaram ele a Jesus? Eu tenho minhas teorias...

Mas o que quero, de fato, compartilhar é que é fundamental no contato com o outro e sua cultura a descoberta desses elementos: literatura, pintura, artesanato em geral, etc. Eles significam! E se queremos apresentar o Evangelho de uma maneira que o outro compreenda e, ao mesmo tempo, minimizando o sincretismo o máximo possível, o missionário deve fazer o dever de casa de conhecer a cosmovisão do outro antes de apresentar-lhe o Evangelho. Daí, danças, ritos, narrativas míticas e tudo o mais deve vir aos olhos e ser estudado com carinho pelo missionário, pois é esse material que nos dará a percepção até mesmo do que na cultura do outro pode ser uma porta aberta para a má compreensão do Evangelho (como é o caso de Taungue, por exemplo).

Neste ponto, quero apresentar dois livros interessantíssimos que vieram às minhas mãos: “Porasy e os estranhos seres da Mitologia Guarani” e “Jegwaká – o clã do centro da terra”, ambos da Professora Vânia P. S. Hu’yju. O primeiro é um romance envolvente a partir das narrativas do avô de Porasy sobre os antigos seres de sua mitologia, mas que, aos poucos, deixam de ser meros seres mitológicos e tomam lugar no dia a dia da jovem menina. “Jegwaká” é sob a perspectiva narrativa de três crianças enviadas pelos deuses: Avá Verá, Kunhã Rendy e Mitã Rory. A partir dos acontecimentos da vida das três crianças somos apresentados ao estilo de vida e à cosmovisão Guarany. O animismo – cosmovisão preponderante nos povos tribais de todo o mundo – é mostrado em todo seu colorido e ambos os livros nos dão essa oportunidade de enxergar o mundo com os olhos do povo Guarany. Duas obras indispensáveis para quem deseja trabalhar com esses povos. Os dois livros se encontram na Amazon em formato de e-book.     

Comunicação e Cultura - Ronaldo Lidório

Nos anos em que trabalhei com o povo Kalapalo, no Parque Indígena do Xingu, tive a oportunidade de ir àquele trabalho logo após o curso do CLM (Curso de Linguística e Missiologia) da Missão ALEM (AssociaçãoLinguística Evangélica Missionária). Sobre o tempo em que estivemos envolvidos especificadamente com os povos do Xingu, tenho narrado essas histórias do nosso contato com eles no Blog Morávios (clique aqui).

Além da formação do CLM, um curso intensivo de um ano para preparar o missionário a trabalhar com povos agrafes, desenvolver um alfabeto, uma ortografia para o povo, alfabetizá-los na própria língua materna e, então, começar o trabalho de tradução da Bíblia, havia o material original do curso CAPACITAR para dar uma formação mínima nas áreas de linguística, antropologia e missiologia. Deste material do CAPACITAR, tive a oportunidade de soma-lo ao que havia reunido no CLM e saí para o Campo Missionário. Na esteira do que estava sendo produzido naquela época, surgiram dois livros do Lidório: “Plantando Igrejas” e “Antropologia Missionária”. Ambos com uma perspectiva Reformada da área de missiologia.

Todavia, a Editora Vida, em 2014, lança o “Comunicação e Cultura” como um resumo e adaptação do que Lidório vinha trabalhando nos últimos anos. Todos os assuntos desenvolvidos por ele, mas agora reunidos em um único livro, que vem com o seguinte subtítulo explicativo na capa: “A Antropologia aplicada ao desenvolvimento de ideias e ações missionárias no contexto transcultural”. E o livro cumpre exatamente este papel. Assim, depois de todos esses anos e após a experiência no Xingu, me vi relendo este novo livro, mas com olhos no passado e no futuro. No passado, porque me vi recordando que tive o privilégio de trabalhar todo o “roteiro de abordagem cultural” criado por Ronaldo Lidório em entrevistas feitas na aldeia e na cidade com a família do Cacique com quem morei. No futuro, porque sei que, a partir deste ano, trabalharei com outras culturas e povos e, assim que chegar, farei mais uma vez esse dever de casa para compreender esse novo ambiente em que estaremos inseridos.

O livro de Lidório possui uma primeira parte dedicada à apresentação dos conceitos e teorias: pressupostos teológicos tanto para a contextualização como para a comunicação; as teorias da comunicação; os conceitos de antropologia, cultura e homem; e o conceito de antropologia missionária. Finalmente, Lidório apresenta os métodos desenvolvidos na história da antropologia sobre pesquisas socioculturais e os padrões possíveis de interpretação. Como o foco é a antropologia missionária, Lidório já apresenta os temas sempre mostrando não apenas as aplicações e implicações dessas teorias no Campo com histórias e exemplos, mas, principalmente, mostra como que a antropologia missionária difere da Acadêmica. Antes de apresentar os roteiros para a sondagem da cultura, o livro ainda trata dos temas da Fenomenologia da Religião, Magia e Totemismo, ritos e Mitos.  

Mas é na segunda parte do livro que encontramos o material mais interessante e prático para o missionário que trabalha com uma cultura alheia a sua num Campo: os métodos Antropos, Pneumatos e Angelos. O primeiro visa dar ao missionário uma ferramenta que o ajude na compreensão da identidade sociocultural do povo; o segundo ajudará o missionário a pesquisar sobre os fenômenos religiosos do povo; o terceiro ajudará na comunicação do Evangelho de uma maneira compreensiva àquela cultura na qual o missionário trabalha a partir de tudo o que o missionário já vem estudando ali.

Ainda na seção conclusiva do livro, Lidório ajudará o missionário apresentando um método de aprendizado de línguas (Dialektos), além de mais alguns tópicos, além de outros estudos de caso. Um livro obrigatório a todo missionário transcultural.  

A vida entre os Antros - Clifford Geertz

“Qual a ideia por trás do fato social?” é a perspectiva mais impactante para a antropologia depois dos anos 60 e que inovou num campo dominado pelo estruturalismo e pelo neoevolucionismo na Academia.

Clifford Geertz é o antropólogo americano que apresentou suas teorias em duas frentes para análises de Campo: por um lado, o estudo simbólico atrás do significado cultural que se revela no estudo das cosmogonias, mitos, ritos e hierarquias presentes na economia diária do povo; por outro, o estudo hermenêutico, buscando a interpretação por trás dos fatos sociais do povo.

A vertente fundada por Geertz ficou conhecida como Antropologia hermenêutica ou interpretativa. O antropólogo, para Geertz, deve ir muito além da descrição dos fatos sociais: ele deve buscar os significados por trás desses fatos. Mas o que mais tem me atraído às teorias de Geertz é o fato da importância que ele dá à Cultura, especialmente às culturas complexas, multifacetadas e multiétnicas e plurirreligiosas. Porém, ao lado dessa perspectiva cultural, ele coaduna o papel do indivíduo como sujeito histórico, agente histórico de transformação. Além disso, Geertz trás para a Antropologia o auxílio da psicologia, da literatura, da filosofia e da semiótica.

“A vida entre os antros e outros ensaios”, da Editora Vozes, publicado em 2015, na Coleção Antropologia, mostra Geertz em toda sua dimensão e inteligência. Ele “falava e lia em árabe, dois ou três dos incontáveis dialetos indonésios, alemão, francês, espanhol, uma ou duas frases em japonês”. A especialidade dele, se assim posso expressar, é o mundo islâmico, o mundo árabe e a diferença entre um e outro. Os seus escritos discorrem sobre povos que foram atingidos pelo Islã, mas que guardam em si a tensão de ver conviver em seus territórios e governos tanto cristãos, como protestantes, católicos, hindus, mórmons e as muitíssimas expressões religiosas nativas. Aqui, nesse ponto, minha atração torna-se evidente, pois muito mais completo e investigador é Geertz do que, por exemplo, Lévi-Strauss, quando tentamos trabalhar com as realidades indígenas no Brasil, realidades também sob a tensão de uma sociedade plural.

Dentre os vários ensaios presentes no livro, quero destacar, primeiramente, todos os que descrevem Marrocos e a Indonésia, alvos de décadas de pesquisa de Geertz e que me deixaram com aquela sensação de “inteligência humilhada”, pois não há assunto algum na minha vida pessoal ou acadêmica que eu domine de maneira tão vasta e profunda como Geertz o faz quando se debruça a entender as sociedades árabes e muçulmanas. O conhecimento histórico, religioso, social, político dessas sociedades revelam um antropólogo estudioso, dedicado e profundo.

O ensaio sobre Malinowski, importantíssimo antropólogo da virada do século XIX para o século XX, mas que Geertz revela algo um tanto inusitado de sua personalidade: sua profunda antipatia e preconceito com o Campo no qual atuava. Malinowski deixou diários em que narra toda sua falta de tato e sua relação nada antropológica com os povos em que trabalhava e que, surpreendentemente, superou sua falta de identificação com o povo sendo incansável na sua disciplina diária de pesquisa. Ele produziu mais de 2.500 páginas de pesquisa fazendo exatamente o contrário do que tanto é ensinado hoje nas Academias – em nada se identificando com o nativo.

Outro ensaio, “Sobre a devastação da Amazônia”, muito especial para mim, pois é sobre um dos livros mais impressionantes que já li acerca das atrocidades cometidas contra povos indígenas, chamado “Trevas no Eldorado”, de Patrick Tierney, fruto de uma pesquisa que durou mais de dez anos e que trouxe um escândalo para a Associação Americana de Antropologia ao divulgar os usos e abusos de antropólogos e cientistas na dizimação do povo Ianomâmi na Venezuela, narrando experiências de eugenia e aliciamento sexual. O título do livro produzido pela Ed. Vozes remete exatamente a este ensaio específico:



Particularmente, o ensaio mais importante é o “Mudando objetivos, movendo alvos”. É aqui que Geertz faz uma apresentação do seu método de trabalho e suas teorias simbólicas e hermenêuticas. Mostrando suas influências – C.S. Pierce, Ferdinand Saussure, Gottlob Frege e Roman Jakobson – Geertz narra seu pensamento sobre os “sistemas de significado” ou “sistemas culturais” para se compreender e ordenar a comparação das religiões. A primeira linha de pensamento, portanto, é a “autonomia de significado”.

Diz Geertz que “significado não é um tema subjetivo, privado, pessoal, “na cabeça”. É um tema público e social, algo construído no fluxo da vida. Trafegamos por sinais em plein air, no mundo onde está a ação; e é nesse trafegar que o significado é produzido”. Aqui é importante notar que o significado é “falado” (não necessariamente pela boca), é narrado nos gestos, comportamentos, na condução para significar.

A segunda linha de pensamento é  “a de que o significado é materialmente incorporado, de que ele é (...)formado, transmitido, compreendido, emblematizado, expresso, comunicado, por meio de signos ponderáveis, perceptíveis e compreensíveis; dispositivos simbólicos, ritos de passagem ou encenações da paixão, equações diferenciais ou provas de impossibilidade, que são seus veículos”. Geertz conclui este ponto chamando a atenção para o fato de que o que torna um dispositivo “religioso” não é sua estrutura, mas seu uso. Assim, o antropólogo precisa estar atento a todo esse “equipamento para viver” construído pela cultura.

Finalmente, a terceira linha é a que aquilo que verdadeiramente importa, que, de fato, interessa e que vai revelar esse “equipamento para viver” é quando “nossos recursos culturais falham, ou começam a falhar. É no meio da confusão insolúvel, do sofrimento inelutável, do mal invencível, que veremos a religiosidade intervir.

Para o parágrafo anterior, é caso comum já no trabalho com povos animistas que, até mesmo pastores oriundos do animismo, quando se deparam com situações extremas – doença incurável de filhos, por exemplo – na madrugada, longe dos olhos de suas congregações, se dirigem aos antigos pajés e feiticeiros para solucionar seus problemas. Enfim, como antropólogos cristãos e missionários precisamos estar atentos a esses limites, pois é ali que se manifestará, verdadeiramente, a apreensão ou não da cosmovisão evangélica.   

Trevas no Eldorado - Patrick Tierney

De todos os livros que já li sobre a questão indígena, indubitavelmente este é o mais chocante de todos. Trata de um escândalo entre os Ianomâmis da Venezuela. Uma reportagem-denúncia, publicada em 2002, que durou 10 anos para ser concluída e, antes mesmo de sua publicação, rendeu as seguintes manchetes: antropologia machista (Salon), a antropologia entra na era do canibalismo (The New York Times), antropólogos loucos (The Nation), os danos das incorreções antropológicas (The National Review), a antropologia é má? (Slate), ianomâmis: o que fizemos com eles? (Time); “cientista” matou índios amazônicos para testar teoria racial (The Guardian). Até casos documentados de antropólogo que aliciou meninos e meninas indígenas para práticas sexuais estão no livro. Um alerta para que não esqueçamos que a ciência também é feita por seres humanos caídos. Nada é neutro no Reino humano...
Após a leitura, classificarei os livros assim:
Péssimo [0] Ruim [*] Regular [**] Bom [***] Muito Bom [****] Excelente [*****]