Parmênides - Platão

A teoria das Ideias será apresentada no contexto do Paradoxo de Zenão. Mas qual o paradoxo de Zenão? Zenão irá defender a tese de Parmênides de que “tudo é um”, pois se as coisas fossem múltiplas, elas teriam que ser semelhantes e diferentes, o que é um absurdo. As coisas não podem ser uma e ser muitas ao mesmo tempo – esta é a tese que seria para Sócrates a grande surpresa se alguém pudesse provar. Portanto, este será o grande esforço empreendido por Parmênides: surpreender Sócrates! (Veja aqui uma breve introdução às teorias dos pré-socráticos).

         Sócrates entrará com a Teoria das Ideias para explicar a existência da multiplicidade das coisas. As Ideias existem por si, portanto são “um”, mas estão separadas das coisas sensíveis, que são múltiplas. A ideia defendida por Sócrates é que as coisas são semelhantes e dessemelhantes, porque cada coisa em si pode ser semelhante com uma ideia da Semelhança e, ao mesmo tempo, ser dessemelhante por participar da ideia de Dessemelhança. Veja que Sócrates não está dizendo que algo pode ser Uno e Múltiplo ao mesmo tempo, pois isso seria o que o surpreenderia. O que Sócrates está afirmando, por meio da Teoria das ideias, é que uma coisa pode ser, por exemplo, semelhante por ser semelhante à Ideia de Semelhante, mas pode ser dessemelhante por participar da Ideia de Dessemelhante. Como exemplo Sócrates pensa no corpo humano que tem o “direito” e o “esquerdo”, o “em cima” e “abaixo”, o “atrás” e a “frente”, isto é, compartilha a multiplicidade; todavia, ninguém negará que é UM corpo humano, uma unidade.     

Retornamos às discussões de Crátilo, pois Zenão não considerava que um “dedo grande” poderia ser também um “dedo pequeno”. Heráclito considerava o Ser em fluxo e, como vimos na última resenha, baseado nesta ideia, Protágoras, que defendia que o homem é a medida de todas as coisas, compreendia que uma pessoa poderia dizer que uma coisa era quente e outra pessoa poderia dizer sobre essa mesma coisa que ela era fria e ambos estariam dizendo a verdade. Esta é ideia que Zenão não aceita, pois essa multiplicidade de uma mesma coisa que é e não é gera um paradoxo, uma contradição. Pois Zenão compreende que o nome de uma coisa se identifica com essa coisa. Por exemplo, “dedo grande”, a coisa e sua propriedade (grande) andam juntas, não é possível que “dedo grande” possa se referir a um dedo pequeno. É contraditório. Cada nome refere-se a um objeto. Mudou a característica do objeto, mudou o seu nome, é um outro objeto, portanto não há multiplicidade para Zenão. E Sócrates, portanto, irá apresentar a Teoria das Ideias para explicar essa nomeação aparentemente contraditória de um mesmo objeto.

         O problema em Crátilo é a predicação do objeto. Não se pode predicar um mesmo objeto diferentemente. Não se pode aceitar que, como Protágoras e Hermógenes defendiam no convencionalismo, um objeto possa ser predicado “quente” por uma pessoa e predicado “frio” por outra, porque, demonstra Sócrates em Crátilo, fosse assim não haveria conhecimento possível da verdade. Mesmo no naturalismo de Górgias e de Crátilo, ainda que um nome ora espelhasse uma coisa de uma maneira e ora espelhasse o fluxo dessa mesma coisa em seu movimento, também não seria possível conhecer as coisas. Tanto o convencionalismo como o naturalismo foram, portanto, refutados por Sócrates em Crátilo.

         Agora, em Parmênides, continuamos buscando uma explicação para o problema da linguagem, o problema do conhecimento, a aquisição possível da verdade. No fim de Crátilo, a conclusão socrática é que, então, devemos buscar conhecer as coisas por elas mesmas e não pelos nomes. Entretanto, como seria aceitável predicações contraditórias diante uma mesma coisa? Esta será a discussão em Parmênides.

         Para Sócrates, o paradoxo de Zenão é aparente, pois eu posso me referir a mim como “um” ser humano e, ao mesmo tempo, referir-me ao meu lado direito e ao meu lado esquerdo, ao embaixo e ao em cima, atrás e à frente, etc. Assim, para Sócrates, não há estranhamento em predicações diferentes de uma mesma coisa. É como se estivéssemos observando propriedades diferentes (lado direito e esquerdo) de uma mesma coisa. Entretanto, isto que acabei de escrever é diferente de afirmar que o “Um” é Múltiplo e que o “Múltiplo” é Um. E em Parmênides, Sócrates afirmará que é isso o que causaria espanto: separar as propriedades das coisas e afirmar que elas se misturam. Para Sócrates não há essa mistura, pois a coisa se refere às Ideias, ora a uma Ideia de Semelhança, ora a uma Ideia de Dessemelhança.

         Parmênides fará exatamente uma refutação ao modo de entendimento e apresentação da Teoria das Ideias e demonstrará para Sócrates que o Uno e o Múltiplo na verdade, se misturam, se entrelaçam – surpresa (esta palavra no grego é thaumastós, que é a palavra que dá origem ao espírito da filosofia)!

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Crátilo - Platão

Há quem pense que Platão não se interessa pela questão da linguagem e que Crátilo seria uma obra menor no corpus do filósofo. Contudo, Platão está se dirigindo há duas concepções sobre a linguagem nesta obra: o convencionalismo e o naturalismo. E que, na verdade, será a partir do problema da linguagem que Platão apresentará a sua teoria das Ideias (ou Formas).

         O convencionalismo pregava que não há relação alguma entre o Ser e as palavras. Estas, quando dadas às coisas, são meramente etiquetas de identificação sem qualquer vínculo com a essência das coisas. Por outro lado, o naturalismo defendia que, ao nomearmos as coisas, já estávamos dizendo o Ser delas. Assim, as palavras e o Ser das coisas estavam vinculados.

         Há um contexto para que possamos compreender melhor os diálogos em Crátilo, a saber, Platão está discutindo com os filósofos pré-socráticos, de um lado Protágoras e de outro Górgias, ambos embasados em Heráclito. Este filósofo defendia duas ideias em relação ao Ser: a doutrina do fluxo de todas as coisas e a doutrina da emanação. O convencionalismo de Protágoras se baseava na doutrina do fluxo de todas as coisas, por isso seria impossível às palavras revelarem algo de uma essência das coisas. O naturalismo de Górgias se baseava na doutrina da emanação, isto é, as coisas emanam algo de sua essência que é captado pelos sentidos não estando as palavras assim totalmente desvinculadas do Ser. Todavia, o naturalismo de Górgias não era uma identificação com o Ser das coisas, mas uma captação. Por que isso é importante? Porque Górgias, embora saiba que algo do Ser é captado pelos sentidos (isto é, a nomeação das coisas não é um processo arbitrário), também concorda que o Ser está em fluxo. Daí Górgias ser o pai da Retórica. Esta é a disciplina que buscará seduzir o ouvinte não pela defesa da verdade, pois esta é inacessível uma vez que o Ser está em fluxo contínuo, mas por meio do discurso mais competente, mais provável, mais bem apresentado. Górgias dará continuidade, portanto, a essa visão mágica da linguagem que é capaz de curar o corpo e a alma dos ouvintes, segundo defendiam os pitagóricos.

         Não era minha intenção já resenhar Platão ou quaisquer gregos, embora eles sejam o pontapé para toda uma teoria dos símbolos. Entretanto, após ler Wittgenstein, e apesar da sua tese de suprimir toda filosofia clássica, tanto ele como Cassirer estão montados sobre os ombros dos gregos (aceitem eles isso ou não). Mas quem não está? Wittgenstein repete a mesma ideia de Parmênides, que veio 2500 anos antes dele, na frase mais famosa e com a qual ele encerra sua obra o Tratactus...: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar." Compare com a frase de Parmênides no poema Da natureza: “É necessário que o dizer e pensar que é sejam; pois podem ser, enquanto nada não é: nisto te indico que reflitas”. Assim, diante de Cassirer e Wittgenstein, percebi que ambos podem ser unidos de certa maneira às tradições gregas (até porque não há nada de novo debaixo do sol). Aliás, não podemos esquecer as próprias palavras de Wittgenstein de que sua filosofia é um exercício contra o feitiço da linguagem. Cassirer à concepção pitagórica da linguagem e Wittgenstein tanto a Górgias, mas, principalmente, a Parmênides, que será apresentado como saída ao problema da linguagem em outra obra de Platão, após a conclusão de Crátilo.

Crátilo se torna especialmente importante para a Bibliotheca de Semiótica não apenas pela ligação com Cassirer e Witttgenstein, mas porque Sócrates vai tratar o nome como uma imagem (lembrando que, para os gregos, “nome” é substantivo, verbo, etc). Do mesmo modo que uma pintura é uma cópia de alguma realidade, também o nome é cópia, imagem de uma coisa em si. Todavia, veremos que é exatamente essa concepção do nome como imagem que vai falir toda a discussão travada na obra e que Platão deverá tentar resolver em Parmênides e no Sofista. Nas resenhas destas obras, desenvolverei as críticas pertinentes ao corpo filosófico platônico.

         Durante a leitura de Crátilo, peguei-me, por várias vezes, lembrando-me de uma questão ligada à discussão entre Sócrates e seus dois amigos. No povo indígena com o qual eu trabalhei, havia um traço cultural que me chamava muita atenção. Os nomes dados aos filhos eram os mesmos nomes dos avós paternos e maternos. E parecia que não iriam faltar nomes, pois cada indígena no correr da sua vida recebe, ao menos, 3 nomes, sendo que são 3 nomes que a mãe dá e 3 nomes que o pai também dá. O pai não chama seu filho pelo nome da mãe e nem a mãe o chamará seu filho pelo nome dado pelo pai. Já deu para perceber que cada indígena tem, portanto, 6 nomes. Contudo, como eles acabam tendo muitos filhos, ainda assim, chega uma hora que os nomes acabam e eles começam a adotar “nomes dos brancos”.

         Certa vez, perguntei ao cacique onde estava o meu aluno chamado Kamaluhe. E ele disse, para meu espanto, que não sabia quem era esse tal de Kamaluhe. Ora, o tal Kamaluhe era filho dele! O problema é que com a chegada da carteira de identidade e da escola há certa confusão nessa questão dos nomes. No caso do Kamaluhe, este era o nome dado pela mãe e, por isso, o pai não o identificou. Tudo isso pode parecer tolice ao leitor desavisado, mas vai ao encontro de pelo menos duas das teorias sobre a linguagem encontrada em Crátilo. Ora, se o Ser está em fluxo e, portanto, se mudamos com o tempo (nascimento, adolescência e vida adulta), um nome só não captaria a nossa essência naquele momento (Heráclito). E mais: para a mãe e para o pai há uma compreensão diversa do ser do filho (Protágoras).

Para resenha completa desta obra, clique aquiO blog "Bibliotheca de Semiótica" pretende ser um banco de resenhas para interessados e missionários que trabalham com outras culturas. Assim, é característica da "Bibliotheca" que, durante os resumos dos livros, eu faça comentários sobre as ideias do autor, concordando ou refutando, para que o leitor possa encontrar uma crítica e auxílio para a formação do seu próprio pensamento. Boa leitura!

Jó - Romance de um homem simples [*****]






Joseph Roth
Cia das Letras
200 Páginas

"Numa cidadezinha russa do início do século XX vivia um judeu muito simples e religioso. Seu nome era Mendel Singer. Homem comum, modesto e temente a Deus, Mendel exercia o ofício de professor, transmitindo os ensinamentos da Bíblia às crianças. Com a mulher, Débora, teve três filhos: Jonas, Schemariah e Miriam. Mas o nascimento do quarto filho dá início a uma série de tormentos: Menuhim é uma criança doente, vitimada pela fraqueza, pela deformidade física e pela epilepsia.
A eclosão da guerra traz novos infortúnios à família Singer. Entre alistamento e deserção, os dois filhos saudáveis de Mendel e Débora tomarão decisões opostas: uma conduzirá aos campos de batalha; a outra, à emigração para a América. Auxiliado pelo filho no estrangeiro, e atormentado pelos namoros constantes da filha com os cossacos, também Mendel tomará a decisão de partir. Ao fazê-lo, porém, terá de deixar para trás o filho doente.
Com essa releitura moderna do livro bíblico de Jó publicada em 1930, Joseph Roth deu à luz aquele que, na opinião de Stefan Zweig, é o romance mais completo e duradouro produzido por toda uma renomada geração de escritores que incluía não poucos ícones da modernidade literária. Um clássico da literatura universal finalmente ao alcance do leitor brasileiro em tradução inédita do alemão".

Investigações Filosóficas - Wittgenstein (2ª parte)

         

“A indizível diversidade de todos os jogos de linguagem cotidianos não nos vem à consciência porque as roupas de nossa linguagem tornam tudo igual”, avisa-nos Wittgenstein. Daí “Investigações Filosóficas” (que é dividida em duas partes, veja aqui) ser uma obra que vai se debruçar nessa dissecação do emprego que fazemos de determinadas frases no dia a dia. O que realmente queremos dizer; se sabemos o que queremos dizer; se é possível o outro saber ou vivenciar o que estamos comunicando; se percebemos a dissimulação do outro; enfim, vemos uma obra que está dialogando o tempo todo com idealistas, empiristas e realistas.

Desde sua primeira obra, Tractatus logico-philosophicus, o tema central (ou a metafísica de Wittgesntein) é que o que há de mais importante é exatamente aquilo sobre o que devemos calar. E este é o centro do “Investigações Filosóficas”. E é muito interessante que aqui ele repita o argumento de Cassirer (que talvez seja mesmo um projeto da Modernidade): a rejeição de toda filosofia tradicional por entender que ela seja resultado de uma limitação da nossa linguagem. No caso de Wittgenstein, era um erro de lógica da nossa linguagem. Para Cassirer, era uma patologia da nossa linguagem. Daí vem, para Wittgenstein, que filosofia não é ciência, mas uma atividade de esclarecimento da linguagem. Contudo, no “Investigações...”, Wittgenstein dirá que esse erro da linguagem é um feitiço, atordoa-nos e nos distancia do que realmente interessa, por isso que, nesta obra, o filósofo vai tratar a filosofia como uma atividade terapêutica. O filósofo trava uma batalha contra a linguagem!

         Não tenho dúvida que um autor de um livro tão difícil de ler como o Tractatus, foi fortemente influenciado pelos anos posteriores em que decidiu ser professor primário e depois jardineiro, antes de retornar à Academia. E este didatismo e linguagem “provinciana” está ali em “Investigações Filosóficas”, que foi uma obra publicada dois anos após a morte do filósofo. Todavia, quando lemos “Investigações...”, fica-se com uma sensação de temas dispersos e não ligados entre si, como se o filósofo trata-se dos assuntos à medida que surgiam na sua mente, aleatoriamente. E é exatamente isso mesmo que Wittgenstein confessa: sua dificuldade de unir o que lhe vem à mente, dar um corpo, uma sistematização à obra.

         Para nossa Bibliotheca de Semiótica, o que mais nos interessa é o “princípio de uso” de Wittgenstein nesta obra resenhada. Wittgenstein dizia que não deveríamos pedir o significado das palavras, mas o seu uso: “Fora do uso, com efeito, um signo parece morto” e “A significação de uma palavra, de uma expressão é seu uso na linguagem”. Nada mais atual do que isso nas nossas discussões teológicas ou em nossos trabalhos de evangelismo: precisamos trazer as pessoas para o “jogo”, para o contexto, para a cultura bíblica e, sem dúvida alguma, para a cultura Reformada, explicando as regras do que queremos que elas entendam. E confirmando o entendimento delas a partir do uso que elas farão com nossas palavras: “justificação”, “salvação”, “predestinação”, “arrependimento”, etc. Este é um conceito importantíssimo para nossa Bibliotheca: entender que o uso que o outro faz de nossas palavras é segundo as regras de um outro jogo, portanto, precisamos trazê-los para entender, para dominar as regras do “jogo” bíblico – e isto é feito por meio de um discipulado construído sobre um trabalho de hábito e educação do nosso ouvinte. Porém, o missionário, o evangelista, o pregador e qualquer cristão que queira dar a razão da sua fé só poderão fazer isso se entenderem primeiramente as regras em que o outro se encontra. Este tipo de postura, por exemplo, irá ajudar na identificação e na solução de problemas como o sincretismo.     

         No campo específico da semiótica, uma das grandes contribuições de Wittgenstein é escapar ao problema da relação indissociável entre o significado e o significante ou entre a expressão e o conteúdo: “Se o senhor N. N. morreu, dizemos que morreu o portador do nome e não o significado do nome. E seria insensato falar deste modo, porque se o nome deixasse de ter um significado, não teria sentido dizer ‘o senhor N.N. morreu’”. Qual a implicação disso? Não é preciso que todos de uma comunidade concordem com o significado de uma palavra (por exemplo, “casa”) para que pudéssemos usá-la. Na verdade, a tese principal de Wittgenstein é que existem diversas gramáticas e que elas se circunscrevem nos mais diferentes aspectos de nossas vidas.

         E como Wittgenstein atingiu a teologia e, principalmente, a hermenêutica? Wittgenstein destrona o “eu” como o único validador da comunicação, fugindo do solipsismo e mostrando que, antes de tudo, a interpretação e a comunicação entre falantes de uma mesma comunidade é  aprender o que dizer, como, onde e quando, isto é, dominar uma língua é dominar a técnica do jogo. O significado não está no “eu” ou no intérprete, mas está na interação dessa relação, e esta interação possui regras.  

         Poderia ser dito muitas coisas sobre Wittgenstein, algumas não interessam ao foco dos nossos estudos como, por exemplo, seu homossexualismo, embora muito das suas lutas espirituais e a busca por pureza estejam referidas inúmeras vezes em cartas e testemunhos de amigos. Outras coisas que serão ditas sobre Wittgenstein deverão aparecer nas resenhas de outros livros. Contudo, gostaria de concluir esta resenha dizendo que Wittgenstein, no momento em que entrega o manuscrito do “Investigações...” aos editores, entrega também um prefácio ao livro em que expressava: “Eu diria: ‘Este livro foi escrito para a glória de Deus’, se hoje em dia essas palavras não parecessem tão tolas, isto é, se não fossem mal-interpretadas. Elas significam simplesmente que o livro foi escrito com a melhor das intenções e que, se não estiver sido escrito com boa vontade, mas por vaidade ou por outro motivo qualquer, seu autor gostaria de vê-lo condenado. Não está em seu poder purifica-lo das escórias, na medida em que ele próprio está longe de ser puro”.

         Deixo aqui ainda uma última e fascinante frase de Wittgenstein: "Se Cristo não ressuscitou, apodreceu no túmulo como qualquer homem, Ele morreu e apodreceu. Então é um mestre como qualquer outro, e não pode mais ser de nenhuma ajuda: e estamos de novo no exílio, sozinhos. Podemos contentar-nos com a sabedoria e a especulação. Estamos, por assim dizer, no inferno, onde apenas podemos sonhar, separados do céu como por um teto. Mas, se devo ser verdadeiramente redimido, então preciso de certeza - não de sabedoria, sonhos, especulação - e essa é a certeza da fé. A fé é fé naquilo de que precisa o meu coração, a minha alma; não o meu intelecto especulativo. Porque é a minha alma, com as suas paixões, quase com a sua carne e o seu sangue, que tem de ser redimida. Talvez se possa dizer: só o amor pode crer na ressurreição. Ou então: é o amor que crê na ressurreição".

           Para resenha completa da 2ª parte do livro, clique aqui. O blog "Bibliotheca de Semiótica" pretende ser um banco de resenhas para interessados e missionários que trabalham com outras culturas. Assim, é característica da "Bibliotheca" que, durante os resumos dos livros, eu faça comentários sobre as ideias do autor, concordando ou refutando, para que o leitor possa encontrar uma crítica e auxílio para a formação do seu próprio pensamento. Boa leitura!

Investigações Filosóficas - Wittgenstein (1ª parte)

Após resenhar dois livros de Cassirer (aqui, aqui e aqui), ler “Investigações filosóficas” de Wittgenstein é sair de uma compreensão de linguagem para outra totalmente oposta ou, ao menos, direcionada, concentrada, num locus diverso. A sensação é de montanha russa: com Cassirer, estamos indo para o alto, transcendendo o universo da linguagem em toda sua potência e, com Wittgenstein, caímos vertiginosamente para alguém que aponta a falência, a incapacidade da linguagem como um todo orgânico na explicação da realidade. Wittgenstein, por isso mesmo, dirige seu leitor para seu conceito-chave de “jogos”.

         Sair de Cassirer e ir para Wittgenstein é sair de alguém que trabalha com todo o potencial da linguagem para alguém que trabalha toda a falência da linguagem – este é o ponto sobre o "feitiço da linguagem" do qual Wittgenstein tratará de se desvencilhar.

Por isso, Wittgenstein vai dizer: “A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento por meio da nossa linguagem”.  Para Cassirer, a filosofia é o esforço da razão humana para entender a si mesmo: um exercício intelectual de autoconhecimento e, para a filosofia moderna, o esforço se caracteriza por identificar, entender e explicar os símbolos criados pelo homem.

Para Wittgenstein, não é a interpretação sozinha de uma palavra que determina a significação. Tanto a interpretação quanto o interpretado pairam no ar e o que os une? As regras próprias daquele jogo! Há um jogo. O jogo tem suas regras próprias. Eu não posso jogar xadrez com as regras do futebol ou do pôquer. Eu não posso ter uma interpretação alheia ao sistema.

Muitas das vezes, quando trabalho com tradução, ou melhor, avaliando a tradução feita por alguém, vinham em minha mente muitas dessas questões propostas por Wittgenstein neste livro. Por exemplo, trabalhando uma palavra como o grego “doxa” que, em versões bíblicas para o português, foi traduzida por “glória” (ARA) e em outras por “natureza” (NTLH), encontramos um caso muito bom para o qual Wittgenstein está chamando a atenção. A mera concepção de “uma palavra por outra, uma denominação por outra”, principalmente de uma língua para outra, esbarra em confusões que demonstram não compreender “as regras específicas daquele jogo de linguagem”. Desde quando a palavra “natureza” seria sinônimo de “glória” em português? E veja a confusão no c. 17 do Evangelho de João quando, por duas ou três vezes, é dito que Jesus recebeu a natureza divina por parte de Deus. Abrir mão da glória que tinha para depois recebê-la é uma coisa bem diferente de dizer que Jesus abriu mão de uma natureza divina para depois recebê-la! E pior, por exemplo, perguntando ao falante de uma língua indígena, cuja Bíblia seguiu essa escolha da NTLH na tradução para sua língua materna, o que ele entende por “natureza” dentro daquele contexto, ele me aponta para o mato, para a selva que estava do lado de fora da sala em que nos encontrávamos conversando. Mas, desde quando, a palavra “natureza”, que já não tem nada a ver com “glória”, teria a ver com natureza no sentido “natureza selvagem”, se o que estamos falando é sobre natureza humana e natureza divina?!

         Assim, embora pareça que Wittgenstein parta de uma linguagem ou de exemplos muito simples e cotidianos da comunicação humana, a grande verdade é que ele reflete um fato importantíssimo que é exatamente os limites da linguagem. Quem, portanto, deve ler “Investigações Filosóficas”? Todos que se interessam pelo estudo de línguas e não apenas filósofos. “Investigações Filosóficas”, tanto pelo seu tema como pelo seu didatismo, deveria ser leitura obrigatória aos missionários transculturais e, principalmente, aos que irão trabalhar com tradução da Bíblia (que são o público para esta minha biblioteca de resenhas). É um livro que nos leva a pensar em coisas tão cotidianas da linguagem, tão óbvias, situações da comunicação que poderão parecer tão sem elegância e sem sofisticação aos mais acostumados com uma linguagem filosófica rebuscada, porém, são essas situações “provincianas” que mais deflagram nossas confusões de interpretação.

É importante salientar que há 2 Wittgenstein: o da primeira obra Tractatus Logico-Philosophicus (1921) e o Wittgenstein posterior. A presente resenha trata de uma obra que representa o “2º Wittgenstein”. A diferença entre essas duas fases e uma crítica aos pontos negativos da filosofia de Wittgenstein virão na próxima resenha, que tratará da 2ª parte do “Investigações filosóficas”.

Para resenha completa da 1ª parte do livro, clique aqui. O blog "Bibliotheca de Semiótica" pretende ser um banco de resenhas para interessados e missionários que trabalham com outras culturas. Assim, é característica da "Bibliotheca" que, durante os resumos dos livros, eu faça comentários sobre as ideias do autor, concordando ou refutando, para que o leitor possa encontrar uma crítica e auxílio para a formação do seu próprio pensamento. Boa leitura!
Após a leitura, classificarei os livros assim:
Péssimo [0] Ruim [*] Regular [**] Bom [***] Muito Bom [****] Excelente [*****]