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Interpretação de texto e
Contaminação
Quando ocorre um crime, uma das
primeiras providências da polícia é isolar o local para que não haja contaminação.
Mas o que é a contaminação? É tudo aquilo que fará com que eu interprete de
maneira errada os fatos, porque o local não foi preservado. Outros entraram e
saíram da cena do crime deixando suas marcas, digitais, DNA e, até mesmo,
alterando a cena, seja trocando objetos de lugar, seja retirando ou adicionando
elementos à cena. Boa parte dos incidentes de contaminação ocorrem
involuntariamente. Ainda assim, muitos réus condenados são absolvidos quando sua
defesa consegue provar que houve contaminação.
Quando lemos obras do passado
também pode ocorrer contaminação. E esta é suficiente para gerar interpretações
equivocadas dos fatos. Veja: só fatos não bastam. É preciso que se mantenha a
cena debaixo de uma situação ideal. Em outras palavras, há regras. Não fosse
assim, cada um traria a sua própria bagagem como herança sobre a cena do passado e
jamais conseguiríamos ver como, de fato, as ideias se originaram e se
desenvolveram. É anacronismo tudo o que eu projeto do presente para o passado
exigindo deste o que ele não pode dar. Assim deve-se entender que ensinos como o Papado, a
primazia de Roma, a Imaculada Conceição, a Transubstanciação, etc não são
encontrados até o ano 200 nas obras que a série Patrística da Paulus nos
apresenta.
Qualquer leitura mais “adepta”
será pura contaminação, isto é, eu estou lendo as minhas próprias marcas que
deixei ali, desrespeitando a cena naquilo que ela realmente diz. Fatos são interpretados,
assim, se as regras de interpretação não são claras e honestas, qualquer fato
(assim como qualquer texto bíblico) pode ser usado para se defender qualquer
coisa, até mesmo coisas contraditórias entre si.
Digo isso, porque quero ser
honesto com tudo o que li até agora e dizer que o que se pode ver é: 1) as
heresias ajudaram e muito a mostrar para a Igreja a necessidade e a urgência de
se definir os livros que eram e que não eram autoritativos; 2) a aceitação do
cânon bíblico não foi produto de uma elite ou de um “poder eclesiástico”, mas
eram os livros que vinham sendo aceitos em várias igrejas locais de lugares
muito diferentes uns dos outros; 3) a Igreja sempre entendeu que o cristianismo
tinha a sua raiz no AT e defendeu ferrenhamente isso; 4) o governo das igrejas
locais era episcopal; 5) os dons extraordinários do Espírito Santo ainda são testemunhados até
Irineu; 6) as igrejas foram descartando os livros – como é o caso do Pastor de
Hermas, por exemplo - que se mostraram contrários aos ensinos que ela recebeu
como Regra de Fé, a Tradição Apostólica; 7) "Sucessão apostólica" não aparece até o ano 200 como um salvo conduto para se introduzir doutrinas novas, ao contrário, o que se lê é que a Tradição Apostólica é uma defesa da ortodoxia, daquilo que foi recebido dos apóstolos e repassado de presbítero para presbítero até Irineu.
Adianto também que tudo isso
mudará radicalmente, pois o próximo livro da série Patrística dará um salto de
quase 200 anos! O mundo será totalmente diferente para Ambrósio de Milão: já
terá ocorrido a conversão de Constantino, o cristianismo já é a religião do
Império, já ocorreu o Concílio de Niceia (325) e estaremos às vésperas do
Concílio de Constantinopla (381). Apesar dessa mudança vertiginosa, a Editora
Paulus não faz nenhum comentário sobre esse vácuo literário de quase 200 anos!
Mas sigamos!
Ainda sobre as Escrituras e a
Tradição Apostólica
Nos livros anteriores da série da
Patrística, já havia me referido aos comentários feitos nas notas de rodapé que
revelam um adepto da Teologia Liberal, um teólogo da libertação.
Além disso, as notas de rodapé demonstram todo o romanismo na leitura e conclusões do comentarista. Por
exemplo, como insistir que Irineu esteja defendendo “a tradição” acima das
Escrituras, quando, na verdade, lendo sob a perspectiva do tempo de Irineu,
podemos ver que o foco dele é, tão somente, mostrar que, ao contrário dos
gnósticos que inventavam suas teorias, as igrejas locais espalhadas pelo mundo
tinham recebido seus ensinos dos seus fundadores, os apóstolos, que depois
registraram o Evangelho. Em outras palavras, as igrejas sabiam
de quem tinham recebido seus ensinos, os gnósticos não! Querer que Irineu
esteja dizendo que a tradição é superior às Escrituras é uma interpolação do
comentarista apenas. Até porque, o argumento de Irineu é que as Escrituras
espalhadas pelas Igrejas são coerentes por causa da unidade dos Apóstolos, que
receberam os ensinos pois caminharam juntos com Jesus, enquanto os gnósticos em
seus escritos, em cada escola gnóstica, em cada livro e a cada mestre deles
traziam ensinos contraditórios entre si, porque eram fábulas inventadas.
Querer daí justificar que a
“tradição” é superior às Escrituras e que, portanto, o colegiado romano é
herdeiro da “tradição”, podendo ensinar coisas que não se confirmam na Bíblia,
não tem nada a ver com o que Irineu está dizendo. O próprio Irineu expõe muito
bem que, se os Apóstolos não tivessem deixado as Escrituras, em questões de
discordância e dúvida, poderia se recorrer às igrejas mais antigas. Veja, o
ponto é: uma vez que há as Escrituras, não se precisa recorrer às Igrejas mais
antigas!
Por outro lado, é bom frisar que Irineu sabe que a salvação não depende da Fé anotada em letra
e tinta. Os povos bárbaros estão sendo salvos pelo que eles têm ouvido: o
Evangelho! Nem todos esses povos tem a Bíblia em suas próprias línguas, mas estão sendo evangelizados pela língua comum e sendo acrescentados à Igreja.
Retomo tudo isso, porque Irineu
pode ser tomado também como alguém que esteja defendendo “a transubstanciação”
na Eucaristia. E a leitura dos seus textos sobre esse tema sofre das mesmas
críticas que fiz quando abordei a "mariologia" e a "tradição apostólica". A linguagem de Irineu sobre o pão e o vinho são
bíblicas, apenas isso. E o foco dele, naturalmente, está em seu contexto: a
mesa aponta para a unidade da Igreja ao contrário da confusão gnóstica.
A Eucaristia em Irineu está
ligada à doutrina da recapitulação, pois assim como Deus é capaz de fazer dos
elementos da terra (pão e vinho) uma nova coisa, por causa da Palavra, Ele será capaz também de nos ressuscitar em
corpo glorificado. Jesus, na sua ressurreição, recapitula o Cosmos: eis que
novos Céus e nova terra serão feitos. Ressurreição da carne que os gnósticos não aceitavam!
A Doutrina da recapitulação e a Theosis
“Theosis” é uma doutrina central
na Teologia Ortodoxa, que vê na Encarnação de Cristo a etapa para a deificação
de todos nós. “Deus se fez homem para que o homem se torne deus” – esta doutrina
encontra sua base bíblica em 2 Pedro 1:4. E muitos Padres da Igreja vão citar, uma hora aqui e outra ali, reverberando essa ideia até que ela ganhe corpo. Eu
mesmo não sei se a doutrina da recapitulação acaba realmente apoiando a Theosis ou não. É
algo para se estudar. Mas a resposta clara de Irineu à clássica pergunta “Por
que Deus se fez homem?” é: “...para que o homem unindo-se ao Verbo de Deus e
recebendo assim a adoção se tornasse filho de Deus”. Já vimos que, para Irineu, a recapitulação é para nos levar à condição de verdadeiros homens.
A Escatologia de Irineu
Deve-se compreender a escatologia
de Irineu também debaixo da doutrina da recapitulação, pois, assim como Jesus
recapitula o homem para a salvação, o Anticristo recapitula toda a linhagem
rebelde para a condenação.
Para Irineu, o Templo de
Jerusalém será reconstruído e ali se assentará o Anticristo. A ênfase de Irineu
no livre-arbítrio humano é forte no livro V, pois é o momento da escolha e da
responsabilidade humanas que estão em jogo. Além disso, o livre-arbítrio faz
parte da economia da nossa salvação para nos amadurecer e levar para mais
próximos de Deus (doutrina da recapitulação).
Para Irineu, a Igreja será
arrebatada e só depois virá a grande tribulação, que será um período de prova e
conversão dos últimos salvos daquele momento. Quando, então, o Anticristo tiver
reinado 3 anos e 6 meses, Jesus virá e destruirá toda obra do mal e reinará
assentado no Templo por mil anos e dará a Abraão a Terra Prometida. Contudo,
não há um Reino de subserviência da Igreja à Israel como já vi em algumas
escatologias (como, por exemplo, no Manual de Escatologia de Dwight Pentecost).
Ao contrário, a posteridade de Abraão é a Igreja e, portanto, estaremos todos
no milênio de Cristo sendo governados por Jesus. Contudo, os que ficaram na
terra e suportaram a Tribulação (e mais os pagãos da Grande Tribulação,
preparados por Deus para este momento) serão governados pelos crentes durante o
milênio.
O milênio se encaixa na doutrina
da recapitulação, pois ele se faz necessário para preparar o povo de Deus para
viver na glória depois do milênio.
Há ensino contraditório em Irineu?
Sim. Embora seja indubitável que, para Irineu, a salvação não se dê pelas obras, mas exclusivamente por Jesus Cristo, em determinados momentos (lembre-se que são 5 livros escritos em datas diferentes), parece que Irineu chama a atenção para que a salvação se deu por causa da presciência de Deus, mas em muitas outros momentos Irineu não considera isso. O ensino do livre-arbítrio também é, para Irineu, a maneira de responsabilizar o homem.
Por que Jesus usou do lodo para
curar o cego de nascença?
Por que Jesus, simplesmente, pelo
poder da sua palavra, não deu vista ao cego no Evangelho de João? Por que usou
do lodo e da água do tanque de Siloé (João 9)? Um tema caro para Irineu (e também para
os Pais da Igreja) é o das “mãos modeladoras de Deus”. Assim como Adão foi
modelado pelas próprias mãos de Jesus no Éden, por causa da doutrina da
recapitulação, Jesus usa do barro novamente e do Espírito Santo (simbolizado
pela água) para remodelar os olhos do cego. E é exatamente assim que Jesus nos
dará um novo corpo para a ressurreição. Ali, na cura daquele cego, Jesus também
estava recapitulando a humanidade e preparando-a para a ressurreição.