Irineu sabe que pela razão o
homem pode ter algum conhecimento de Deus, mas é só pela revelação que ele pode
alcançar a consciência plena sobre Deus.
Mesmo assim, ainda estamos num período
de defesa do cânon e não de sua análise. O que eu quero dizer com isso? É que
Irineu está defendendo os livros e justificando o porquê deles serem aceitos pela Igreja como Palavra de Deus.
O leitmotiv que anima Irineu
é, antes de tudo, o Ser de Deus. Pois este era o ataque dos gnósticos: eles
diziam que não havia apenas um Deus; diziam que o Deus do AT é diferente do NT;
afirmavam que ou Jesus só veio em aparência de homem ou Jesus era um e o Cristo, recebido por Jesus só no batismo de João, era outro; os gnósticos insistiam em uma
leitura alegórica e hermética dos livros bíblicos; ensinavam que a gnose deles
era superior e que alguns discípulos sabiam dessa gnose deles, então, a leitura
do texto sagrado desses gnósticos era sempre uma tentativa de achar as pistas deixadas que
indicavam as mensagens secretas que só serão captadas pelos iniciados, etc.
Portanto, Irineu precisa ser lido naquele contexto histórico e anterior. É
preciso que se leia Irineu desde os textos bíblicos, passando por Clemente
Romano, Ignácio, Policarpo, Pápias, Taciano e Justino, do contrário, você trará
para Irineu o peso já de uma série de debates posteriores que não pertencem a ele. Defendo que, para ser o mais justo possível com Irineu, você o leia não
com tudo aquilo que você já sabe, mas com as informações que o Irineu possui. E
o mais importante: você deve lembrar que ele não é um autor inspirado e
canônico.
A Igreja cristã sempre foi
defensora do povo judeu desde o seu nascedouro. Prova disso é a luta incansável
dos primeiros pais em se levantar contra todos que queriam eliminar os livros e
os trechos que eram "judeus" demais. A Igreja se levantou contra
esses chamando-os de hereges! Não fosse assim, se a Igreja quisesse virar as
costas para "o povo que matou Jesus", ela não teria lutado tenazmente
para manter o Velho Testamento consigo e nem teria se esforçado tanto para
continuar vinculada à sua raiz judaica. Agora, depois de todo esse esforço
apologético desde Clemente o Romano em 90, vem, a partir do ano 170, a cereja
do bolo: o livro IV de Irineu, que compõe o "Contra as heresias", é a
defesa dois Testamentos. "Seu plano compreende 3 partes. Além do prefácio
e conclusão, temos: a) unidade dos dois Testamentos, provada pelas próprias
palavras de Cristo (nn. 1-19); b) o AT é profecia do NT (nn. 20-35); c) a
unidade dos dois Testamentos é comprovada pelas parábolas de Cristo (nn.
36-41,3)".
Irineu irá, no Livro IV, mostrar
que os judeus não aceitaram a Jesus, porque pensaram que poderiam conhecer
diretamente o Pai. Irineu é claro ao afirmar que só se conhece o Pai por meio
do Filho.
Ele mostra no Livro IV que o
AT é a preparação para a chegada de Jesus. A Lei, o Sábado, a circuncisão, tudo
isso foi dado como um meio para preparar o ser humano. E Irineu insiste que
nada disso foi dado ao homem para sua justificação, mas como sinal! A partir deste ponto, é necessário que se leia Irineu compreendendo a linha
interpretativa que, na verdade, costura e une sua leitura bíblica e que será o
traço original dele: a doutrina da recapitulação. Além do contexto histórico, a
sua doutrina da recapitulação será fundamental para entendermos como Irineu
pensa os próximos temas que serão abordados aqui.
Teologia de Irineu:
Doutrina da recapitulação: A
história da salvação humana transcende a vinda de Cristo para a remissão dos
nossos pecados. Jesus veio também para recapitular toda a humanidade desde
Adão, levando-nos, gradativamente, à perfeição (não há universalismo em Irineu, é bom frisar). A doutrina da recapitulação é a
ação educacional progressiva de Deus e é nesse contexto que se encaixa a Lei. O homem não foi criado perfeito e nem
imperfeito, mas estava no Plano de Deus nos “aprimorar” para que pudéssemos
viver no Espírito. Assim, com a Queda, além da remissão dos pecados, Jesus veio
para nos levar à perfeição, tornando-nos humanamente plenos.
Da Queda até o Cativeiro no
Egito, o homem não precisava das Escrituras, pois ele sabia em seu coração da lei que ali estava impressa e
buscava agradar a Deus, mesmo pecador. Todavia, durante o Cativeiro, ele
esqueceu de como agradar a Deus e, então, veio a Lei para que o homem fosse
preparado para a vinda plena do Espírito, que levará o homem a se assemelhar
com Deus, completando, assim, a sua humanização.
Por isso Jesus veio e viveu todas
as fases da vida humana (bebê, criança, adulto), para recapitular a nossa
própria história. Quando Adão foi criado, ele era apenas uma “criança”,
precisava virar adulto. O objetivo divino, então, é que Adão se torne aquilo
para o que foi criado: assemelhar-se ao seu Criador, Jesus, que o criou do
barro segundo o molde de Si mesmo, o homem verdadeiro. Todavia, esse homem
verdadeiro só foi revelado na encarnação de Jesus. Em Jesus, a humanidade
encontrou Deus de novo e só Jesus pode recapitular tudo (por isso as
genealogias nos Evangelhos, na verdade, elas mostram já a recapitulação da
humanidade até Adão). Com isso, também, Irineu combate um ensino herético do
seu tempo que afirmava que Adão não fora salvo.
A “Mariologia” e a doutrina da
recapitulação
Assim, compreendendo a doutrina
da recapitulação, a gente pode ler Irineu dentro da sua maneira de ler a
Bíblia. Em outras palavras, a recapitulação é o óculos que ele usa para ler
as Escrituras. A minha proposta, então, é que você aceite 3 pressupostos antes
de ler Irineu: 1) ele não é um autor inspirado (logo, comete erros); 2) ele
interpreta e explica a Bíblia à luz da recapitulação; e, por fim, mas não menos
importante, você deve ler Irineu dentro do tempo dele e não com tudo aquilo que
hoje você tem de informação, mas ele não! Vamos lá!
Se você destaca certos trechos de
Irineu e os lê no contexto de tudo o que hoje sabemos acerca do ensino
romanista sobre Maria, sim, parece que ele vai ao encontro de toda a atual
mariologia. Só que não. Entenda: até agora, todos os que lemos, desde Clemente
o Romano, enfim, os volumes 01, 02 e 03 da série Patrística, nenhuma teologia
mariana surgiu. A construção da mariologia como a conhecemos hoje é ainda
posterior a Irineu e não se pode, portanto, pôr na conta dele coisas que, na
verdade, outros é que querem ver.
Afinal, o que Irineu disse sobre
Maria? A mesma coisa que Justino! Só que Irineu, à luz da doutrina da
recapitulação, irá desenvolver o tema. Justino faz a ligação clássica na
teologia entre Eva e Maria. E, quando você estabelece isso, a saber, as duas
premissas: 1) o pecado entrou no mundo pela desobediência de Eva e 2) a
destruição do pecado veio ao mundo pela obediência de Maria, o silogismo
carrega você à conclusão: então Maria participou da salvação! A resposta é sim
e não! O que Irineu está pensando quando afirma que Maria salvou Eva, e mais,
que por causa de Maria houve a salvação do gênero humano? Nada. Nada além do
que é aceitável! Vou explicar.
Na doutrina da recapitulação
subjaz a doutrina da “recirculatio”, que entende o “desfazimento” dos nós que
foram dados: para que o erro seja desfeito é preciso que se faça o caminho
inverso. Assim, onde houve desobediência é preciso que haja obediência. Logo,
onde Adão errou Cristo acertou. Onde Eva errou, Maria acertou. Se fomos condenados por causa da falta de fé de Eva, fomos salvos pela fé que Maria demonstrou em sua resposta às palavras do anjo. Isto faz parte da economia da história da nossa salvação. Entendendo isso
veremos que Irineu não está atribuindo a Maria a efetivação da nossa salvação,
pois fosse dessa maneira, a lógica nos levaria a entender que Jesus, então,
salvou os homens e Maria salvou as mulheres. Contudo não é sobre isso que
Irineu está falando: a obediência de Maria desatou o nó da desobediência de Eva
para satisfazer a doutrina da “recirculatio”. Só isso.
Se você entender os limites do
pensamento de Irineu, poderá tranquilamente afirmar, juntamente como ele, que a salvação
do gênero humano veio de Maria! E não é verdade? Jesus veio de Maria! Mas, digo
ainda, que Maria também foi, para Irineu, recapitulada por Jesus: ela está na
genealogia de Jesus!!! Entende? Se a própria Maria não precisasse de salvação, ela não
seria apresentada na genealogia, pois a genealogia é a recapitulação da
história da nossa salvação em Jesus para Irineu. E Maria, aquela que cantou “A minha alma
engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” também
precisava de um Salvador. Ora, o que depois fizeram (e fazem) das palavras de
Irineu não é um problema dele, mas revela uma interpretação anacrônica
sobre seu pensamento e que não leva em conta o próprio todo e contexto do
pensamento de Irineu nesses cinco livros.
(continua...)
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