Sermões – Leão Magno (série Patrística)

Leão recebeu a sagração episcopal em 29 de setembro de 440. Tento imaginar como era o seu tempo: as diversas hordas bárbaras invadindo o Império Romano, o declínio político de Roma, as diversas heresias que ressurgiam dentro do Cristianismo e a insubordinação da Igreja Oriental às tentativas de Leão em estabelecer a supremacia do bispado de Roma, por meio do papado, sobre as demais igrejas. Assim, é surpreendente que Leão seja exatamente a pessoa que a História precisava naquele momento e naquela posição: culto, teólogo firme e diplomata.

Em seus sermões, 2 pontos me chamaram a atenção: 1) sua firmeza teológica diante das inúmeras heresias que ressurgiam no Cristianismo; 2) os seus sermões confirmam a razão pela qual o Cristianismo desenraizou o paganismo do Império Romano, a saber, a prática da misericórdia.

Os escritos de Leão sobre as duas naturezas de Jesus, sobre a Trindade e o Espírito Santo são de uma clareza e paixão inegáveis. Leão é um apologista apaixonado pela Trindade e domina a linguagem a ponto de perceber que ela deve ser forçada ao máximo para que a beleza do mistério cristão impacte a todos. Ele, portanto, se levanta contra os monofisistas do seu tempo: escreve contra os arianos, os maniqueus, contra Apolinário, pelagianos, priscialianistas e tantos outros. Seus sermões deveriam ser leitura obrigatória nos Seminários cristãos, pois os estudantes seriam aprendizes de uma escrita que sabe coadunar verdade e beleza, como hoje pouquíssimo se vê nos púlpitos de nossas igrejas. Isto é maravilhoso: são sermões! Mensagens de um pastor às suas ovelhas! Sermões curtos, mas bíblicos. Curtos, contundentes, profundos e ousados, porque sabem que devem orientar não somente a fé, mas também a prática de suas ovelhas. E aqui se pode ver mais uma qualidade no Cristianismo do tempo de Leão que, mesmo entre as Igrejas Reformadas, ainda era comum até “ontem”: o ano litúrgico. Todos os sermões de Leão seguem os eventos do Ano Litúrgico e, lendo-os dessa forma, também percebo como que perdemos em qualidade expositiva e comunicativa ao abolimos o ano litúrgico, contudo, infelizmente, talvez esse seja um daqueles pontos em que a mudança cultural dite suas regras e não há nada o que possamos fazer para impedir. 

Muito se fala sobre o papel do martírio no crescimento da Igreja pela Europa, Norte da África e Oriente Médio, todavia, com o fim das perseguições aos cristãos a partir de 313, o impacto do Cristianismo sobre os pagãos se deu no amor que os cristãos tinham pelos pobres. Juliano, que subiu ao trono em 361, tenta em vão reavivar o paganismo no Império. É de Juliano a frase: “Esses galileus ímpios alimentam não apenas os seus próprios pobres mas os nossos também; nossos pobres não recebem nossos cuidados”. E para a continuidade da expansão cristã, essa caridade encontrará nos sermões de Leão o seu maior incentivador, assim, é inegável que, num tempo histórico tão conturbado, a Igreja tenha fincado os pés solidamente a partir de suas ações de misericórdia. Penso eu que a construção da civilização ocidental passa pelas obras de caridade operadas sobejamente pelos cristãos. As chamadas de Leão em seus sermões ao perdão das dívidas financeiras e à soltura de presos, sermões dirigidos a ricos e pobres, servos e príncipes, impactaram-me profundamente.

Todavia, as enormes diferenças entre a fé protestante e a fé romana já se estabelecem claramente. Não é à toa que João Calvino descreve Leão Magno nestas palavras: “Ora, ele foi um homem, tanto erudito e fecundo, quanto ávido de glória e domínio sem medida, mas é preciso indagar se porventura as igrejas de então deram crédito ao seu testemunho”. E a resposta é o próprio testemunho da história que, desde cedo, ainda no tempo de Irineu, já nos mostra duas culturas, duas línguas, dois mundos díspares e que conseguiram se manter juntos, ou ajuntados, enquanto puderam: a Igreja do Ocidente e a Igreja do Oriente. Ao mesmo tempo que Leão defendia a cristologia ortodoxa contra os monofisistas no Concílio de Calcedônia (451), ele rejeitou a decisão desse Concílio sobre a elevação de Constantinopla ao segundo lugar logo depois de Roma.

As investidas de Leão para se estabelecer como Primaz da Igreja, até mesmo trazendo para si o título romano de “Sumo Pontífice” (pontifex maximus), que era o título do sacerdote de Netuno que resolvia as questões religiosas na antiga Roma, não encontrou subordinação universal. Toda tentativa foi em direção de estabelecer o papado como a herança de Pedro, aquilo em torno do que a Igreja encontraria sua unidade: “negar o papa é negar a Pedro, negar a Pedro é negar a Cristo”, declarou Leão. Portanto, mesmo quando usa uma linguagem sobre a “unidade da Igreja” e “comunhão dos santos”, Leão está trazendo para si as prerrogativas para a sede romana. Na verdade, foi Damásio de Roma (366-84) quem primeiro declarou sobre Roma a primazia sobre as demais igrejas e o papado como herança de Pedro. Leão avança, preparando o caminho para Gregório I (540-604).

A despeito desse pano de fundo histórico, o que me interessa é observar a questão da misericórdia cristã em seu aspecto mais profundo e que tange o sincretismo. Já notei que, no meu entendimento, a misericórdia cristã foi a grande força destruidora do paganismo (até mais do que o sangue derramado dos cristãos). E os sermões de Leão são contundentes nessa área, todavia, há uma motivação contrária à fé reformada: essa misericórdia é uma garantia de salvação! E como o Cristianismo chegou a esse ponto é o que me interessa particularmente, não apenas porque saber isso ressaltará as posturas diferentes entre o romanismo e a Reforma, mas também ajudará a compreender a própria condição da Reforma Protestante nos dias de hoje e os perigos dos reformados sucumbirem (se é que já não o fizeram) aos seus próprios sincretismos com o quais as diversas culturas sempre pressionam o Evangelho em cada geração.

Mas não acredito que este blog seja o espaço para entrar nestes pormenores, então, os publiquei aqui. Como este espaço é mais para resenhas ou comentários sobre livros que lemos, gostaria ainda de chamar a atenção para a interpretação de Leão sobre o que prefiguraria a cena de Simão Cirene ajudando Jesus e a redução dos três dias da morte de Jesus. Enfim, “Sermões” é mais uma daquelas leituras imperdíveis para se entender a visão romana de Cristianismo, mas que, por outro lado, ajuda-nos também a compreender a própria Fé Reformada. . 

Leia todos os textos que escrevi a partir da leitura de Leão Magno:

Ambrósio de Milão - sobre a penitência (série Patrística)

Quis falar sobre este livro à parte por ser ele de uma argumentação e beleza singulares no contexto histórico em que está inserido. Todo este livro e tudo que será tratado repercute uma experiência que, ao meu ver, foi traumática para a Igreja: o cisma de Novaciano.

Mais uma vez na história, teremos dois lados e ambos estarão certos e errados em seus posicionamentos. A postura de não aceitar a penitência, pois a graça de Deus perdoaria os pecados, encontra guarita no pensamento da Reforma Protestante que viria tanto tempo depois. Por outro lado, a dureza em relação aos apóstatas arrependidos, exigindo-lhes um rebatismo e não meramente uma confissão pública, a divisão da Igreja e a aceitação de ter sido eleito como líder da nova Igreja surgida do cisma, tudo isso depõe contra esses que foram chamados de “puros”, palavra que vem de “cátaros” no grego. Os novos puritanos foram assim chamados por não concederem o perdão e não aceitarem que a igreja romana também assim o fizesse com os apóstatas arrependidos. Eles passaram a rebatizar seus convertidos.

Tento entender o que aqueles cristãos viveram debaixo daquelas 3 grandes perseguições antes de Galério lançar o Edito da Tolerância (311). A história conta que Decio (250) perpetrou a maior perseguição oficial e que, pela primeira vez, envolveu todo o Império. É por causa desta perseguição que Orígenes morre após sofrer tortura. Decio obrigou que todos os cidadãos o adorassem e prestassem culto de ações de graça para que, por meio disso, provassem sua lealdade a Roma. Muitos cristãos compraram esses documentos para que pensassem que fizeram os sacrifícios exigidos. Nesses cultos eram feitos sacrifícios e quem deles participasse recebia um documento comprovando ter se submetido a esse evento religioso e civil. A história diz, porém, que a maioria dos cristãos optou por fazer esse sacrifício para não morrer. É impossível que uma experiência como essa não tenha marcado indelevelmente o Cristianismo! Mesmo após a morte de Decio, houve ainda grande perseguição debaixo de Valeriano, que com vários editos acirrou ainda mais a perseguição contra os cristãos. Um último grande avanço esmagador contra a Igreja se deu com Diocleciano, que mandou que as casas dos cristãos e as cópias das Escrituras fossem queimadas. Em 313, Constantino encerra com um decreto a perseguição aos cristãos. É a partir desse contexto que precisamos ler a obra de Ambrósio.

Assim como o contexto histórico nos ajuda a avaliar o aparecimento dos novacianos e compreender os erros e acertos de ambos os lados, o mesmo contexto ajudará a perceber que o “papado” foi ao mesmo tempo uma construção e uma imposição às demais igrejas favorecida por várias questões exigidas naquele momento. Ainda que assim o tenha sido, o papado nunca foi aceito pelas igrejas do Oriente e, mesmo no Ocidente, sempre foi questionado por questões políticas, doutrinárias e morais. Exemplo disso é a controvérsia Quartodecimana que quase separa a Cristandade ainda no fim do século II.

Daí Ambrósio abrir seu livro tratando da moderação como a mais bela de todas as virtudes - é uma resposta clara aos novacianos, que só desapareceriam no século VIII. E o livro todo se apresenta como uma pérola da misericórdia que deveria ser lido por todo cristão. A tese de Ambrósio, que escreve muito bem e ainda nos presenteia com lindas frases de efeito, é que a moderação deve temperar a justiça (Ec 17: 16-17). A igreja não pode exigir uma penitência que não levará a uma indulgência. Toda penitência deve prever seu fim, sua indulgência. Quando, ao contrário, os novacianos se negam a perdoar, mostram sua heresia, pois foi dada à igreja o conceder o perdão.

Como podem os novacianos negar a misericórdia concedida por Deus (Os 6:6)? Jesus veio na carne do nosso pecado exatamente para a nossa redenção: ele tinha a nossa carne, mas sua carne não tinha nossos vícios, diz Ambrósio. 



Contra os novacianos, Ambrósio chega a apelar que os que são submetidos à tortura podem falar com a boca numa direção, enquanto o coração continua entregue ao Senhor! Se perguntássemos ao diabo sobre estes que cederam à tortura é certo que escutaríamos dele: este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim, diz Ambrósio! É usada a parábola da Grande Festa (Mt 22) contra os novacianos, pois estes estão negando que se entre na festa os coxos, os cegos e os aleijados (os fracos apóstatas arrependidos).

Parece que um dos argumentos dos Novacianos é que o homem não poderia perdoar os pecados por meio da penitência apenas pelo batismo. Daí eles rebatizarem os convertidos e negarem as penitências de Roma sobre os apóstatas arrependidos. Não é muito claro se há algo mais nestas penitências além da confissão dos pecados e uma postura de arrependimento públicas para mostrar a mudança de coração, associadas à prática do jejum.

Embora os novacianos pudessem estar certos quanto à inutilidade das penitências àqueles que já foram alcançados pela Graça, estavam totalmente errados quanto a não perdoar e a limitar essa mesma graça, tornando-a ineficaz diante do pecado da apostasia. E se os novacianos estão errados, Ambrósio no afã de apresentar seus argumentos também erra e abre caminho para o que, mais tarde, vai se desenvolver como uma das mais principais doutrinas refutadas na Reforma Protestante, a saber, a intercessão dos santos. Para Ambrósio, quanto aos pecados leves, cada um deve orar por si, mas quanto aos delitos graves, naqueles que o próprio Deus se mostra diretamente aborrecido, nestes a intercessão deve ser dos mais santos, dos mais justos (como foi no caso de Moisés e Jeremias diante do povo, argumenta Ambrósio). Tudo isso como resposta aos Novacianos que diziam não poder perdoar a quem nem Deus perdoa, dessa postura para o “quinhão de boas obras acumuladas pelos santos e que poderão ser contabilizadas nas contas dos pecadores mais miseráveis” será um pulo. 

Assim, vemos estabelecido o palco para a Reforma Protestante: a Igreja Romana crê na Cruz de Cristo para o perdão do pecado que nos separa de Deus, mas o sangue de Cristo não cobre os demais pecados que virão a seguir na vida do fiel, por isso (veja que sequer se levanta a existência do purgatório) é preciso que as penitências cumpram sua função. Porém, os novacianos levantam a questão do “pecado imperdoável”, aí Ambrósio contra-argumenta que, biblicamente, houve a intercessão de homens mais santos para cobrir estes pecados abomináveis. Deve-se, portanto, apelar a estes...

O que me chama a atenção nisso tudo é ver como nascem os falsos ensinos, os ensinos equivocados. Temos de um lado os novacianos e de outro Ambrósio e em ambos podemos ver os acertos e os erros dos cristãos daquele período: a intercessão dos santos, a penitência para o perdão dos pecados, o surgimento do pontificado papal, o cisma da igreja, a dureza da ala puritana e o rebatismo para a salvação. Estamos chegando ao fim do século IV. 

Ambrósio de Milão (1ª parte) - série Patrística

Entre os escritos de Irineu e os de Ambrósio há um vão de quase 200 anos. Pesquisei e tentei entender o porquê desse vácuo na literatura cristã, mas o máximo que posso dar são suposições pessoais: 1) acredito que a série Patrística siga a Tradição latina e que, portanto, a produção grega não está sendo levada em consideração (será?); 2) a perseguição contra os cristãos piorou no 2º século; 3) o problema com os Novacianos causou um trauma na igreja martírica; e 4) após a conversão de Constantino, houve uma adaptação cada vez maior do cristianismo à sociedade envolvente.

O que vimos até Irineu foi uma Igreja fortemente combativa, mas os Novacianos (250), que tratarei melhor no próximo post, é o pano de fundo que, na minha opinião, dará o contexto e explicará a opção tomada pela igreja no terceiro século. O novacionismo tornou-se um movimento dos seguidores de Novácio, que se recusava a aceitar de volta os cristãos que, durante a grande perseguição do Imperador Décio, apostataram e sacrificaram aos deuses romanos para não morrerem. Entretanto, não foi apenas contra o novacionismo que Ambrósio vai escrever, mas também contra o arianismo e contra o bispo Apolinário de Laodicéia, que apresentava uma cristologia herética.

Uma nota surpreendente que devo fazer, pois mostra como o cristianismo do tempo de Ambrósio mudou substancialmente, é que, mesmo após a condenação do arianismo no Concílio de Niceia (325), por muito tempo a Igreja aceitou a alternância entre ortodoxos e arianos nas sedes episcopais. O arianismo negava a consubstancialidade do Filho com o Pai, logo Jesus não era Deus e, portanto, em algum momento teria sido criado. O arianismo avançou sobre a igreja do Oriente. O Concílio de Constantinopla (381) renova a condenação do arianismo.

Embora nos livros presentes neste volume da Patrística dedicado a Ambrósio de Milão, assim como nos anteriores, não haja nada que corrobore uma mariologia, um dos títulos de outro livro de Ambrósio é “Sobre a virgindade perpétua de Maria”. Aliás, Ambrósio escreveu outras duas obras sobre o valor da virgindade: “Exortação à virgindade” e “Sobre a instituição das virgens”.

No primeiro livro, “Sobre o símbolo”, Ambrósio trata sobre o símbolo da fé, que é o resumo dado pelos apóstolos. Ele atenta, criticando tanto a Igreja do Oriente como a do Ocidente, que não podemos acrescentar e nem tirar nada desse resumo. Aqui, para confrontar o patripassionismo, heresia que declara não haver diferença entre o Pai e o Filho, assim teria sido o Pai a sofrer na cruz, Ambrósio expõe uma linda defesa da Trindade, mostrando que a ortodoxia foi herdada dos apóstolos de Jesus.

Em Ambrósio está muito mais marcado a questão já do papado e deste vindo como herança de Pedro. Interessante notar também que a tríade se dá Jesus-Pedro-Papa, sendo que a palavra “vicário”, para Ambrósio, refere-se àquele que se encontra no lugar de Pedro (e não diretamente no lugar de Cristo). Para Ambrósio, o símbolo não deve ser escrito, pois deve ser decorado.

No livro, Ambrósio está dando pequenas aulas, exortações, na verdade, aos que foram batizados. O argumento que ele dá para explicar o sacramento do batismo depois de já tê-lo ministrado é que o justo não é salvo pelas obras, mas pela fé, assim como Abraão. Foi a fé que nos salvou, mas é preciso que sejamos “abertos” pelo ritual realizado pelo sacerdote durante o batismo para que os fiéis agora possam ser ensinados sobre tudo o que se deu no rito. Em outras palavras, o que aconteceu você recebeu pela fé, que é um presente de Cristo, e, por causa dela, recebeu o batismo sem compreender tudo o que foi feito (isto é o que Ambrósio está chamando de “pela fé”).

Ambrósio passa a explicar o rito do batismo em detalhes. O que me chama a atenção é um certo gnosticismo oficializado pelo romanismo. Há um rito de iniciação. Você não entende o que significa bem aquilo, mas se submete “pela fé”. A fé é um presente de Jesus, logo se submetem ao batismo não os que compreendem, mas os que foram chamados, os que possuem a “fé”. A compreensão fica para depois que você já passou pelo rito.

Ambrósio na sua interpretação fortemente alegórica trará todas ilustrações de batismo do AT para explicar o batismo cristão, todavia, e isto é muito importante, são sacramentos diferentes: os sacramentos instituídos por Jesus são mais sagrados e anteriores aos dos judeus! Quanto à Ceia, Ambrósio irá fazer uma diferença que Irineu já havia feito: “judeu” é o povo nascente em Moisés. Por que Ambrósio faz isso? Para explicar que os sacramentos cristãos, embora encontrem figuras no povo judeu, são superiores (porque aqueles eram sombras e a perfeição agora chegou com a Igreja) e mais antigos, pois são anteriores à formação da nação judaica em Moisés. A Ceia cristã foi dada como sombra em Melquisede e o batismo cristão no dilúvio com Noé.

Por que Jesus precisou ser batizado e por que a forma de batismo dele foi diferente do que a Igreja faz no tempo de Ambrósio?

Na sua exortação ao recém-batizado, Ambrósio explica que, primeiro, o sacerdote consagra a água e nessa consagração vem o ES e faz dessa água não mais uma água comum, porque ela realizará a purificação e santificação do batizado. Com Jesus, a ordem é diferente: Jesus entrou primeiro na água e só depois veio o ES, para que as pessoas não pensassem que Jesus precisava ser purificado. Todavia, Ambrósio está julgando o batismo de Jesus com critérios posteriores, assim como quem julga o passado por regras válidas no presente. O correto seria Ambrósio perceber que o batismo de Jesus tem um significado diferente do nosso batismo. O batismo de Jesus é um símbolo que aponta numa direção diferente da apontada pelo nosso batismo. A pergunta que se deveria fazer, uma vez percebido que a mensagem do batismo de Jesus é diferente, deve ser: qual é a singularidade daquela mensagem?

Não podemos esquecer que Ambrósio está tratando o batismo sob o evento histórico e traumático dos Novacianos. Estes não aceitavam que os cristãos apóstatas fossem recebidos novamente, uma vez que, para não morrer, se entregaram ao sacrifício dos deuses romanos na época da perseguição. Posteriormente, contudo, arrependeram-se e pediram para retornar à comunhão. Os apóstatas arrependidos eram submetidos às penitências devidas e depois reincorporados à comunhão pelo Bispo de Roma. Novaciano criou um cisma na Igreja, deixando-se eleger Papa contra o Bispo Romano. Os Novacianos entendiam, ao contrário de Roma, que, para os apóstatas serem recebidos de volta, eles precisavam ser novamente batizados. Daí surgirá toda a discussão sobre o que é o batismo, discussão que se estenderá até Agostinho, mas que já em Ambrósio encontra a tese de que o batismo, assim como a Ceia, é realizado pelo próprio Jesus e é irrevogável pelo que ele significa: o sinal e o selo da aliança, portanto irrepetível (assim como a circuncisão).

Até o tempo de Irineu, este deu testemunho da presença de sinais e maravilhas, já Ambrósio precisa justificar (170 anos depois) a ausência desses sinais: os sinais eram para os incrédulos, mas agora, na plenitude da Igreja, eles tem o privilégio da fé (I Cor 14:22). Ainda na descrição do rito do batismo, por mais de uma vez, Ambrósio se refere à estrutura de uma Igreja que se serve do modelo veterotestamentário convivendo com o modelo do Novo Testamento: sumo sacerdote, sacerdote, levita e presbítero são os nomes que aparecem durante o rito do batismo.

Ambrósio vai ligar o batismo à ideia da morte do velho homem, contudo não o faz associando o batismo à forma de sepultamento, como muitos fazem ao ler o texto de Paulo aos Romanos (6:4-5), ainda que no tempo de Paulo, assim como aconteceu com Jesus, o sepultamento fosse feito na pedra escavada e não no chão. Ambrósio, por outro viés, faz a ligação do batismo com o sepultamento pelo verso “Do pó (terra) vieste e ao pó (terra) voltarás”, afirmando que assim como a terra não lava, mas a água que sai da terra lava, a água é usada como ligação do homem à terra. Ao imergir na água aquela sentença de Gênesis é desfeita, pois o homem morre, mas sem o terror da morte. O batismo registrado por Ambrósio é por imersão, mas é tríplice: o fiel é mergulhado nas águas 3 vezes. Tudo isso para que o Pai, o Filho e o ES deem o seu perdão a todos os pecados outrora cometidos.

Assim que o fiel sai das águas, ele recebe na cabeça o unguento, para significar a regeneração do Espírito. Além do unguento na cabeça, logo após a saída das águas, na Igreja de Milão, ao contrário do que acontecia em Roma, o sumo sacerdote lava os pés do fiel. Ambrósio justifica sua desobediência à Roma, alegando que eles em Milão também sabem pensar ao ler as Escrituras (olha o sola scriptura aí rsrsrs) e que, ainda que não seja esse o costume em Roma, é claro que se deve lavar os pés, pois: “Se eu não te lavar os pés, não terás parte comigo” (João 13: 8). Para Ambrósio, além do exemplo de Pedro, o lava-pés ocorre porque foi a parte de Adão que Satanás insidiou. Finalmente, após tudo isso, pela invocação do sacerdote ocorre a infusão do ES, que é o que conhecemos hoje pelo nome de “crisma”. Parece que, literalmente, ainda antes do batismo, o sacerdote cobre os olhos do fiel com barro à semelhança do que Jesus fez com o cego no Evangelho de João.  

“Tudo que ele falou é mistério”, diz Ambrósio sobre o evangelho de João. Assim, mais uma vez, eu volto à tese de que houve um sincretismo nos últimos 170 anos entre Irineu e Ambrósio no que se refere ao gnosticismo. A referência de que a mensagem do Evangelho também era uma gnose, ainda que revelada e, por isso mesmo, superior às pseudognoses, recebeu uma ênfase que não havia até Irineu. A própria interpretação alegórica favorece esse significado oculto, místico, hermético das Escrituras, pois se a alegoria é o método de interpretação bíblico, evidentemente também o era para os gnósticos. Portanto, caberia indagar: entre uma alegoria e outra como saber qual a correta, uma vez que a alegoria é um método de certa maneira arbitrário? É evidente que a igreja precisará estabelecer que é ela quem tem a interpretação correta das Sagradas Escrituras!

No livro IV, “Sobre os sacramentos”, Ambrósio fará uma defesa da superioridade do sacramento da Ceia em relação ao sacramentos judeus apelando para a antiguidade: a ceia remete à Melquisedeque! Porque, para Ambrósio, a nação judaica começa em Moisés, daí ser importante para ele trazer a ligação com tudo o que é anterior, tanto para o batismo como para a ceia. Melquisedeque é Jesus que deu a Abraão a Ceia. Veja que, neste ponto, não há qualquer espaço para uma doutrina da transubstanciação. Por diversas vezes, Ambrósio parece realmente se referir a uma transubstanciação literal dos elementos ao longo dos livros, todavia, em todos esses momentos, logo após, ele traz alguma frase que aponta para o fato dele estar se expressando espiritualmente. O que dificulta e gera essa ambiguidade é a linguagem sempre alegórica de Ambrósio. Pois, como a própria Confissão de Fé de Westminster explica no Capítulo XXVII, Dos Sacramentos, II: “Em todo o sacramento há uma relação espiritual ou união sacramental entre o sinal e a coisa significada, e por isso os nomes e efeitos de um são atribuídos ao outro”. Assim, pode ser que realmente o que Ambrósio esteja fazendo seja apenas tomando os nomes e efeitos de um e atribuindo-os ao outro. O final do livro de Ambrósio “Sobre os mistérios” aponta nessa direção. 

No livro V, “Sobre os sacramentos”, Ambrósio passa a tratar da oração do Pai Nosso e interpreta que o “pão” da oração se refere à ceia do Senhor. Assim, na Missa (pois, embora sem uma realidade de transubstanciação, há o sacrifício espiritual e real de Cristo no rito da mesa), o fiel deve participar diariamente do pão, ao contrário dos gregos, que só participam uma vez por ano.

Quanto ao batismo, expressa-se claramente uma diferença quanto ao papel do rito na regeneração do fiel e o que é dito na Confissão de Fé de Westminster. Assim, é neste momento em que se deixa de ser uma mera diferença de linguagem e o símbolo deixa de ser um indicador, um sinal, passando a ser a própria realidade simbolizada. A água, verdadeiramente, para nada serve, até que tenha recebido a consagração do sacerdote e, com as palavras proferidas por ele, o ES vem sobre as águas e elas passam a ser mais do que meramente são:

CFW: “Dos Sacramentos”, V. Posto que seja grande pecado desprezar ou negligenciar esta ordenança, contudo, a graça e a salvação não se acham tão inseparavelmente ligadas com ela, que sem ela ninguém possa ser regenerado e salvo os que sejam indubitavelmente regenerados todos os que são batizados.

Uma das grandes sacadas de Ambrósio, e este tipo de leitura que ele faz me interessa tremendamente, é quando ele compara as "pombas" da Arca de Noé e aquela que desceu sobre Jesus no batismo. Ele irá fazer essa comparação para comprovar que a presença do ES no nosso batismo, embora uma presença invisível, é real.

Ambrósio argumenta que a pomba lançada por Noé é uma alegoria do ES naquele que foi uma figura do batismo, a saber, o dilúvio. Os sacramentos (batismo e ceia) cristãos são superiores aos dos judeus (Ambrósio entende o judeu como a nação nascida em Moisés), porque são mais antigos (Noé e Melquisedeque vieram antes de Moisés), contudo, são ainda só imagens, figuras, sombras da realidade que seria instaurada no NT.

Portanto, pode-se perguntar, diz Ambrósio: como que a pomba que veio sobre Jesus é mais real que a de Noé se esta era uma pomba de verdade e aquela era "em forma de pomba", isto é, sequer era uma pomba mesmo, apenas uma figura, uma aparência? Ora, como aceitar que a pomba de Noé é que era imagem e a que veio sobre Jesus é que era real, se sequer os olhos das testemunhas do batismo de Jesus podiam distingui-la direito?

Grande sacada de Ambrósio: a criatura só pode ser imagem, pois ela se dissolve, muda e passa, mas a divindade permanece para sempre. Aquela pomba em Noé, portanto, era apenas figura, mas aquela aparência que desceu sobre Jesus era a realidade, manifestada por causa dos incrédulos. Portanto, durante o batismo, a fé é chamada a ver a realidade da presença invisível do ES. Se em outros momentos, houve fogo caindo do céu e anjos revirando águas para que os incrédulos vissem, a fé, que é um presente superior, não precisa ver, pois sabe da realidade da presença do ES no batismo e da presença de Cristo na Ceia. Em suma: embora o essencial seja invisível aos olhos, a fé capta a presença da realidade divina que assalta este mundo nos sacramentos.

Todavia, como já foi dito, no batismo, a linguagem é ultrapassada no seu significado alegórico e simbólico e passa a ser a própria realidade indicada: para Ambrósio esta água lava dos pecados. E é interessante entender isso, porque esta é a porta aberta para se compreender a diferença entre a posição romana e a reformada. Pois o sangue da cruz e a água do ES lavam do pecado que nos tira da presença de Deus, todavia, se no sangue e na água é dado a nós apenas a entrada do céu, como apagar a dívida dos pecados cometidos depois de sermos salvos? Como ainda não existe a doutrino do purgatório, pois nenhum dos escritos até aqui o citou, restam as penitências. Estas é que serão responsáveis por fazer aquilo que o sangue e a cruz de Cristo não foram capazes. E neste ponto é interessante notar que para os Novacianos o sangue de Cristo já cobria todos os pecados, daí eles serem contra a penitência, que, neste momento, parecia incluir a confissão pública dos pecados, a confissão íntima e algum ato visível como uma postura de luto até que fosse determinado pelo sacerdote o fim de tudo isso.

No próximo post, quero falar do “Da penitência” (último livro do volume dedicado a Ambrósio) à parte, por causa da beleza na linguagem de Ambrósio que merece comentários mais dedicados.
Após a leitura, classificarei os livros assim:
Péssimo [0] Ruim [*] Regular [**] Bom [***] Muito Bom [****] Excelente [*****]