Quis falar sobre este livro à
parte por ser ele de uma argumentação e beleza singulares no contexto histórico em
que está inserido. Todo este livro e tudo que será tratado repercute uma
experiência que, ao meu ver, foi traumática para a Igreja: o cisma de Novaciano.
Mais uma vez na história, teremos
dois lados e ambos estarão certos e errados em seus posicionamentos. A postura
de não aceitar a penitência, pois a graça de Deus perdoaria os pecados, encontra
guarita no pensamento da Reforma Protestante que viria tanto tempo depois. Por
outro lado, a dureza em relação aos apóstatas arrependidos, exigindo-lhes um
rebatismo e não meramente uma confissão pública, a divisão da Igreja
e a aceitação de ter sido eleito como líder da nova Igreja surgida do cisma,
tudo isso depõe contra esses que foram chamados de “puros”, palavra que vem de “cátaros”
no grego. Os novos puritanos foram assim chamados por não concederem o perdão e
não aceitarem que a igreja romana também assim o fizesse com os apóstatas
arrependidos. Eles passaram a rebatizar seus convertidos.
Tento entender o que aqueles
cristãos viveram debaixo daquelas 3 grandes perseguições antes de Galério lançar
o Edito da Tolerância (311). A história conta que Decio (250) perpetrou a maior
perseguição oficial e que, pela primeira vez, envolveu todo o Império. É por
causa desta perseguição que Orígenes morre após sofrer tortura. Decio obrigou
que todos os cidadãos o adorassem e prestassem culto de ações de graça para
que, por meio disso, provassem sua lealdade a Roma. Muitos cristãos compraram esses documentos para que pensassem que fizeram os sacrifícios exigidos. Nesses cultos eram feitos
sacrifícios e quem deles participasse recebia um documento comprovando ter se submetido a esse evento religioso e civil. A história diz, porém, que a maioria dos cristãos optou
por fazer esse sacrifício para não morrer. É impossível que uma experiência
como essa não tenha marcado indelevelmente o Cristianismo! Mesmo após a morte
de Decio, houve ainda grande perseguição debaixo de Valeriano, que com vários editos
acirrou ainda mais a perseguição contra os cristãos. Um último grande avanço
esmagador contra a Igreja se deu com Diocleciano, que mandou que as casas dos
cristãos e as cópias das Escrituras fossem queimadas. Em 313, Constantino
encerra com um decreto a perseguição aos cristãos. É a partir desse contexto
que precisamos ler a obra de Ambrósio.
Assim como o contexto histórico
nos ajuda a avaliar o aparecimento dos novacianos e compreender os erros e
acertos de ambos os lados, o mesmo contexto ajudará a perceber que o “papado”
foi ao mesmo tempo uma construção e uma imposição às demais igrejas favorecida
por várias questões exigidas naquele momento. Ainda que assim o tenha sido, o papado nunca foi
aceito pelas igrejas do Oriente e, mesmo no Ocidente, sempre foi questionado
por questões políticas, doutrinárias e morais. Exemplo disso é a controvérsia
Quartodecimana que quase separa a Cristandade ainda no fim do século II.
Daí Ambrósio abrir seu livro
tratando da moderação como a mais bela de todas as virtudes - é uma resposta clara aos novacianos, que só desapareceriam no século VIII. E o livro todo se
apresenta como uma pérola da misericórdia que deveria ser lido por todo
cristão. A tese de Ambrósio, que escreve muito bem e ainda nos presenteia com lindas frases de efeito, é que a
moderação deve temperar a justiça (Ec 17: 16-17). A igreja não pode exigir uma
penitência que não levará a uma indulgência. Toda penitência deve prever seu
fim, sua indulgência. Quando, ao contrário, os novacianos se negam a perdoar,
mostram sua heresia, pois foi dada à igreja o conceder o perdão.
Como podem os novacianos negar a misericórdia
concedida por Deus (Os 6:6)? Jesus veio na carne do nosso pecado exatamente
para a nossa redenção: ele tinha a nossa carne, mas sua carne não tinha nossos
vícios, diz Ambrósio.
Contra os novacianos, Ambrósio chega a apelar
que os que são submetidos à tortura podem falar com a boca numa direção,
enquanto o coração continua entregue ao Senhor! Se perguntássemos ao diabo
sobre estes que cederam à tortura é certo que escutaríamos dele: este povo me
honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim, diz Ambrósio! É usada a
parábola da Grande Festa (Mt 22) contra os novacianos, pois estes estão negando
que se entre na festa os coxos, os cegos e os aleijados (os fracos apóstatas
arrependidos).
Parece que um dos argumentos dos
Novacianos é que o homem não poderia perdoar os pecados por meio da penitência
apenas pelo batismo. Daí eles rebatizarem os convertidos e negarem as
penitências de Roma sobre os apóstatas arrependidos. Não é muito claro se há
algo mais nestas penitências além da confissão dos pecados e uma postura
de arrependimento públicas para mostrar a mudança de coração, associadas à prática do jejum.
Embora os novacianos pudessem estar certos quanto à inutilidade das
penitências àqueles que já foram alcançados pela Graça, estavam totalmente errados
quanto a não perdoar e a limitar essa mesma graça, tornando-a ineficaz diante do
pecado da apostasia. E se os novacianos estão errados, Ambrósio no afã de
apresentar seus argumentos também erra e abre caminho para o que, mais tarde,
vai se desenvolver como uma das mais principais doutrinas refutadas na Reforma
Protestante, a saber, a intercessão dos santos. Para Ambrósio, quanto aos pecados leves, cada um deve orar por si, mas quanto aos delitos
graves, naqueles que o próprio Deus se mostra diretamente aborrecido, nestes a
intercessão deve ser dos mais santos, dos mais justos (como foi no caso de Moisés e
Jeremias diante do povo, argumenta Ambrósio). Tudo isso como resposta aos Novacianos
que diziam não poder perdoar a quem nem Deus perdoa, dessa postura para o “quinhão de
boas obras acumuladas pelos santos e que poderão ser contabilizadas nas contas
dos pecadores mais miseráveis” será um pulo.
Assim, vemos estabelecido
o palco para a Reforma Protestante: a Igreja Romana crê na Cruz de Cristo para
o perdão do pecado que nos separa de Deus, mas o sangue de Cristo não cobre os
demais pecados que virão a seguir na vida do fiel, por isso (veja que sequer se levanta a existência do purgatório) é preciso que as penitências
cumpram sua função. Porém, os novacianos levantam a questão do “pecado
imperdoável”, aí Ambrósio contra-argumenta que, biblicamente, houve a
intercessão de homens mais santos para cobrir estes pecados abomináveis. Deve-se, portanto,
apelar a estes...
O que me chama a atenção nisso
tudo é ver como nascem os falsos ensinos, os ensinos equivocados. Temos de um lado os novacianos e de
outro Ambrósio e em ambos podemos ver os acertos e os erros dos cristãos daquele período: a intercessão dos santos, a penitência para o perdão dos pecados, o surgimento do pontificado papal, o cisma da igreja, a dureza da ala puritana e o rebatismo para a salvação. Estamos chegando ao fim do século IV.
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