Entre os escritos de Irineu e os
de Ambrósio há um vão de quase 200 anos. Pesquisei e tentei entender o porquê
desse vácuo na literatura cristã, mas o máximo que posso dar são suposições
pessoais: 1) acredito que a série Patrística siga a Tradição latina e que,
portanto, a produção grega não está sendo levada em consideração (será?); 2) a
perseguição contra os cristãos piorou no 2º século; 3) o problema com os
Novacianos causou um trauma na igreja martírica; e 4) após a conversão de
Constantino, houve uma adaptação cada vez maior do cristianismo à sociedade
envolvente.
O que vimos até Irineu foi uma
Igreja fortemente combativa, mas os Novacianos (250), que tratarei melhor no
próximo post, é o pano de fundo que, na minha opinião, dará o contexto e
explicará a opção tomada pela igreja no terceiro século. O novacionismo
tornou-se um movimento dos seguidores de Novácio, que se recusava a aceitar de
volta os cristãos que, durante a grande perseguição do Imperador Décio,
apostataram e sacrificaram aos deuses romanos para não morrerem. Entretanto,
não foi apenas contra o novacionismo que Ambrósio vai escrever, mas também
contra o arianismo e contra o bispo Apolinário de Laodicéia, que apresentava
uma cristologia herética.
Uma nota surpreendente que devo
fazer, pois mostra como o cristianismo do tempo de Ambrósio mudou
substancialmente, é que, mesmo após a condenação do arianismo no Concílio de
Niceia (325), por muito tempo a Igreja aceitou a alternância entre ortodoxos e
arianos nas sedes episcopais. O arianismo negava a consubstancialidade do Filho
com o Pai, logo Jesus não era Deus e, portanto, em algum momento teria sido
criado. O arianismo avançou sobre a igreja do Oriente. O Concílio de
Constantinopla (381) renova a condenação do arianismo.
Embora nos livros presentes neste
volume da Patrística dedicado a Ambrósio de Milão, assim como nos anteriores,
não haja nada que corrobore uma mariologia, um dos títulos de outro livro de
Ambrósio é “Sobre a virgindade perpétua de Maria”. Aliás, Ambrósio escreveu
outras duas obras sobre o valor da virgindade: “Exortação à virgindade” e
“Sobre a instituição das virgens”.
No primeiro livro, “Sobre o
símbolo”, Ambrósio trata sobre o símbolo da fé, que é o resumo dado pelos
apóstolos. Ele atenta, criticando tanto a Igreja do Oriente como a do Ocidente,
que não podemos acrescentar e nem tirar nada desse resumo. Aqui, para
confrontar o patripassionismo, heresia que declara não haver diferença entre o
Pai e o Filho, assim teria sido o Pai a sofrer na cruz, Ambrósio expõe uma
linda defesa da Trindade, mostrando que a ortodoxia foi herdada dos apóstolos
de Jesus.
Em Ambrósio está muito mais
marcado a questão já do papado e deste vindo como herança de Pedro.
Interessante notar também que a tríade se dá Jesus-Pedro-Papa, sendo que a
palavra “vicário”, para Ambrósio, refere-se àquele que se encontra no lugar de
Pedro (e não diretamente no lugar de Cristo). Para Ambrósio, o símbolo não deve
ser escrito, pois deve ser decorado.
No livro, Ambrósio está dando
pequenas aulas, exortações, na verdade, aos que foram batizados. O argumento
que ele dá para explicar o sacramento do batismo depois de já tê-lo ministrado
é que o justo não é salvo pelas obras, mas pela fé, assim como Abraão. Foi a fé
que nos salvou, mas é preciso que sejamos “abertos” pelo ritual realizado pelo sacerdote
durante o batismo para que os fiéis agora possam ser ensinados sobre tudo o que
se deu no rito. Em outras palavras, o que aconteceu você recebeu pela fé, que é
um presente de Cristo, e, por causa dela, recebeu o batismo sem compreender
tudo o que foi feito (isto é o que Ambrósio está chamando de “pela fé”).
Ambrósio passa a explicar o rito
do batismo em detalhes. O que me chama a atenção é um certo gnosticismo
oficializado pelo romanismo. Há um rito de iniciação. Você não entende o que
significa bem aquilo, mas se submete “pela fé”. A fé é um presente de Jesus,
logo se submetem ao batismo não os que compreendem, mas os que foram chamados,
os que possuem a “fé”. A compreensão fica para depois que você já passou pelo
rito.
Ambrósio na sua interpretação fortemente
alegórica trará todas ilustrações de batismo do AT para explicar o batismo
cristão, todavia, e isto é muito importante, são sacramentos diferentes: os
sacramentos instituídos por Jesus são mais sagrados e anteriores aos dos
judeus! Quanto à Ceia, Ambrósio irá fazer uma diferença que Irineu já havia
feito: “judeu” é o povo nascente em Moisés. Por que Ambrósio faz isso? Para
explicar que os sacramentos cristãos, embora encontrem figuras no povo judeu,
são superiores (porque aqueles eram sombras e a perfeição agora chegou com a
Igreja) e mais antigos, pois são anteriores à formação da nação judaica em
Moisés. A Ceia cristã foi dada como sombra em Melquisede e o batismo cristão no
dilúvio com Noé.
Por que Jesus precisou ser
batizado e por que a forma de batismo dele foi diferente do que a Igreja faz no
tempo de Ambrósio?
Na sua exortação ao
recém-batizado, Ambrósio explica que, primeiro, o sacerdote consagra a água e
nessa consagração vem o ES e faz dessa água não mais uma água comum, porque ela
realizará a purificação e santificação do batizado. Com Jesus, a ordem é
diferente: Jesus entrou primeiro na água e só depois veio o ES, para que as
pessoas não pensassem que Jesus precisava ser purificado. Todavia, Ambrósio
está julgando o batismo de Jesus com critérios posteriores, assim como quem
julga o passado por regras válidas no presente. O correto seria Ambrósio
perceber que o batismo de Jesus tem um significado diferente do nosso batismo.
O batismo de Jesus é um símbolo que aponta numa direção diferente da apontada
pelo nosso batismo. A pergunta que se deveria fazer, uma vez percebido que a
mensagem do batismo de Jesus é diferente, deve ser: qual é a singularidade daquela
mensagem?
Não podemos esquecer que Ambrósio
está tratando o batismo sob o evento histórico e traumático dos Novacianos.
Estes não aceitavam que os cristãos apóstatas fossem recebidos novamente, uma
vez que, para não morrer, se entregaram ao sacrifício dos deuses romanos na
época da perseguição. Posteriormente, contudo, arrependeram-se e pediram para
retornar à comunhão. Os apóstatas arrependidos eram submetidos às penitências
devidas e depois reincorporados à comunhão pelo Bispo de Roma. Novaciano criou um
cisma na Igreja, deixando-se eleger Papa contra o Bispo Romano. Os Novacianos
entendiam, ao contrário de Roma, que, para os apóstatas serem recebidos de
volta, eles precisavam ser novamente batizados. Daí surgirá toda a discussão
sobre o que é o batismo, discussão que se estenderá até Agostinho, mas que já
em Ambrósio encontra a tese de que o batismo, assim como a Ceia, é realizado
pelo próprio Jesus e é irrevogável pelo que ele significa: o sinal e o selo da
aliança, portanto irrepetível (assim como a circuncisão).
Até o tempo de Irineu, este deu
testemunho da presença de sinais e maravilhas, já Ambrósio precisa justificar
(170 anos depois) a ausência desses sinais: os sinais eram para os incrédulos,
mas agora, na plenitude da Igreja, eles tem o privilégio da fé (I Cor 14:22).
Ainda na descrição do rito do batismo, por mais de uma vez, Ambrósio se refere
à estrutura de uma Igreja que se serve do modelo veterotestamentário convivendo
com o modelo do Novo Testamento: sumo sacerdote, sacerdote, levita e presbítero
são os nomes que aparecem durante o rito do batismo.
Ambrósio vai ligar o batismo à
ideia da morte do velho homem, contudo não o faz associando o batismo à forma
de sepultamento, como muitos fazem ao ler o texto de Paulo aos Romanos (6:4-5),
ainda que no tempo de Paulo, assim como aconteceu com Jesus, o sepultamento
fosse feito na pedra escavada e não no chão. Ambrósio, por outro viés, faz a
ligação do batismo com o sepultamento pelo verso “Do pó (terra) vieste e ao pó
(terra) voltarás”, afirmando que assim como a terra não lava, mas a água que
sai da terra lava, a água é usada como ligação do homem à terra. Ao imergir na
água aquela sentença de Gênesis é desfeita, pois o homem morre, mas sem o
terror da morte. O batismo registrado por Ambrósio é por imersão, mas é
tríplice: o fiel é mergulhado nas águas 3 vezes. Tudo isso para que o Pai, o
Filho e o ES deem o seu perdão a todos os pecados outrora cometidos.
Assim que o fiel sai das águas,
ele recebe na cabeça o unguento, para significar a regeneração do Espírito.
Além do unguento na cabeça, logo após a saída das águas, na Igreja de Milão, ao
contrário do que acontecia em Roma, o sumo sacerdote lava os pés do fiel.
Ambrósio justifica sua desobediência à Roma, alegando que eles em Milão também
sabem pensar ao ler as Escrituras (olha o sola
scriptura aí rsrsrs) e que, ainda que não seja esse o costume em Roma, é
claro que se deve lavar os pés, pois: “Se eu não te lavar os pés, não terás
parte comigo” (João 13: 8). Para Ambrósio, além do exemplo de Pedro, o lava-pés
ocorre porque foi a parte de Adão que Satanás insidiou. Finalmente, após tudo
isso, pela invocação do sacerdote ocorre a infusão do ES, que é o que conhecemos
hoje pelo nome de “crisma”. Parece que, literalmente, ainda antes do batismo, o
sacerdote cobre os olhos do fiel com barro à semelhança do que Jesus fez com o
cego no Evangelho de João.
“Tudo que ele falou é mistério”,
diz Ambrósio sobre o evangelho de João. Assim, mais uma vez, eu volto à tese de
que houve um sincretismo nos últimos 170 anos entre Irineu e Ambrósio no que se
refere ao gnosticismo. A referência de que a mensagem do Evangelho também era
uma gnose, ainda que revelada e, por isso mesmo, superior às pseudognoses,
recebeu uma ênfase que não havia até Irineu. A própria interpretação alegórica
favorece esse significado oculto, místico, hermético das Escrituras, pois se a
alegoria é o método de interpretação bíblico, evidentemente também o era para
os gnósticos. Portanto, caberia indagar: entre uma alegoria e outra como saber
qual a correta, uma vez que a alegoria é um método de certa maneira arbitrário?
É evidente que a igreja precisará estabelecer que é ela quem tem a interpretação
correta das Sagradas Escrituras!
No livro IV, “Sobre os
sacramentos”, Ambrósio fará uma defesa da superioridade do sacramento da Ceia
em relação ao sacramentos judeus apelando para a antiguidade: a ceia remete à
Melquisedeque! Porque, para Ambrósio, a nação judaica começa em Moisés, daí ser
importante para ele trazer a ligação com tudo o que é anterior, tanto para o
batismo como para a ceia. Melquisedeque é Jesus que deu a Abraão a Ceia. Veja
que, neste ponto, não há qualquer espaço para uma doutrina da
transubstanciação. Por diversas vezes, Ambrósio parece realmente se referir a
uma transubstanciação literal dos elementos ao longo dos livros, todavia, em
todos esses momentos, logo após, ele traz alguma frase que aponta para o fato
dele estar se expressando espiritualmente. O que dificulta e gera essa
ambiguidade é a linguagem sempre alegórica de Ambrósio. Pois, como a própria
Confissão de Fé de Westminster explica no Capítulo XXVII, Dos Sacramentos, II: “Em
todo o sacramento há uma relação espiritual ou união sacramental entre o sinal
e a coisa significada, e por isso os nomes e efeitos de um são atribuídos ao
outro”. Assim, pode ser que realmente o que Ambrósio esteja fazendo seja apenas
tomando os nomes e efeitos de um e atribuindo-os ao outro. O final do livro de
Ambrósio “Sobre os mistérios” aponta nessa direção.

No livro V, “Sobre os sacramentos”,
Ambrósio passa a tratar da oração do Pai Nosso e interpreta que o “pão” da
oração se refere à ceia do Senhor. Assim, na Missa (pois, embora sem uma
realidade de transubstanciação, há o sacrifício espiritual e real de Cristo no
rito da mesa), o fiel deve participar diariamente do pão, ao contrário dos
gregos, que só participam uma vez por ano.
Quanto ao batismo, expressa-se
claramente uma diferença quanto ao papel do rito na regeneração do fiel e o que
é dito na Confissão de Fé de Westminster. Assim, é neste momento em que se
deixa de ser uma mera diferença de linguagem e o símbolo deixa de ser um
indicador, um sinal, passando a ser a própria realidade simbolizada. A água,
verdadeiramente, para nada serve, até que tenha recebido a consagração do
sacerdote e, com as palavras proferidas por ele, o ES vem sobre as águas e elas
passam a ser mais do que meramente são:
CFW: “Dos Sacramentos”, V. Posto que seja
grande pecado desprezar ou negligenciar esta ordenança, contudo, a graça e a
salvação não se acham tão inseparavelmente ligadas com ela, que sem ela ninguém
possa ser regenerado e salvo os que sejam indubitavelmente regenerados todos os
que são batizados.
Uma das grandes sacadas de
Ambrósio, e este tipo de leitura que ele faz me interessa tremendamente, é
quando ele compara as "pombas" da Arca de Noé e aquela que desceu
sobre Jesus no batismo. Ele irá fazer essa comparação para comprovar que a
presença do ES no nosso batismo, embora uma presença invisível, é real.
Ambrósio argumenta que a pomba
lançada por Noé é uma alegoria do ES naquele que foi uma figura do batismo, a
saber, o dilúvio. Os sacramentos (batismo e ceia) cristãos são superiores aos
dos judeus (Ambrósio entende o judeu como a nação nascida em Moisés), porque
são mais antigos (Noé e Melquisedeque vieram antes de Moisés), contudo, são
ainda só imagens, figuras, sombras da realidade que seria instaurada no NT.
Portanto, pode-se perguntar, diz
Ambrósio: como que a pomba que veio sobre Jesus é mais real que a de Noé se
esta era uma pomba de verdade e aquela era "em forma de pomba", isto
é, sequer era uma pomba mesmo, apenas uma figura, uma aparência? Ora, como
aceitar que a pomba de Noé é que era imagem e a que veio sobre Jesus é que era
real, se sequer os olhos das testemunhas do batismo de Jesus podiam
distingui-la direito?
Grande sacada de Ambrósio: a
criatura só pode ser imagem, pois ela se dissolve, muda e passa, mas a
divindade permanece para sempre. Aquela pomba em Noé, portanto, era apenas
figura, mas aquela aparência que desceu sobre Jesus era a realidade,
manifestada por causa dos incrédulos. Portanto, durante o batismo, a fé é
chamada a ver a realidade da presença invisível do ES. Se em outros momentos,
houve fogo caindo do céu e anjos revirando águas para que os incrédulos vissem,
a fé, que é um presente superior, não precisa ver, pois sabe da realidade da
presença do ES no batismo e da presença de Cristo na Ceia. Em suma: embora o
essencial seja invisível aos olhos, a fé capta a presença da realidade divina
que assalta este mundo nos sacramentos.
Todavia, como já foi dito, no
batismo, a linguagem é ultrapassada no seu significado alegórico e simbólico e
passa a ser a própria realidade indicada: para Ambrósio esta água lava dos
pecados. E é interessante entender isso, porque esta é a porta aberta para se
compreender a diferença entre a posição romana e a reformada. Pois o sangue da
cruz e a água do ES lavam do pecado que nos tira da presença de Deus, todavia,
se no sangue e na água é dado a nós apenas a entrada do céu, como apagar a
dívida dos pecados cometidos depois de sermos salvos? Como ainda não existe a
doutrino do purgatório, pois nenhum dos escritos até aqui o citou, restam as
penitências. Estas é que serão responsáveis por fazer aquilo que o sangue e a
cruz de Cristo não foram capazes. E neste ponto é interessante notar que para
os Novacianos o sangue de Cristo já cobria todos os pecados, daí eles serem
contra a penitência, que, neste momento, parecia incluir a confissão pública
dos pecados, a confissão íntima e algum ato visível como uma postura de luto
até que fosse determinado pelo sacerdote o fim de tudo isso.
No próximo post, quero falar do “Da
penitência” (último livro do volume dedicado a Ambrósio) à parte, por causa da
beleza na linguagem de Ambrósio que merece comentários mais dedicados.