Confissões - Santo Agostinho [****]
Santo Agostinho
Editora Paulus
464 páginas
"Numa época em que estão na moda as biografias é mais do que atual a leitura desse clássico. Santo Agostinho faz uma autoacusação, sem atenuantes, ao contrário dos autores das biografias contemporâneas, que procuram se colocar em evidência e se comprazem no falar de si mesmo. Trata-se realmente de uma ¨confissão¨ no duplo sentido que o latim confere a esse termo: confessar a própria miséria e confessar a grandeza da misericórdia divina"
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Após a leitura, classificarei os livros assim:
Péssimo [0] Ruim [*] Regular [**] Bom [***] Muito Bom [****] Excelente [*****]
23 comentários:
Estimulado pelas resenhas do meu amigo Roberto Vargas Jr. em seu blog homônimo; pela indicação do meu outro amigo, Osmar Neves; e aproveitando o desconto que a Paulus concedeu no dia 10, comprei o livro "Confissões" e "Livre-Arbítrio" de Agostinho.
Achei mais prudente começar pelo primeiro, tendo-se em vista a possibilidade de conhecer a tragetória e parte do seu pensamento, pois o livro se trata da sua "autobiografia" [e como não havia lido nada diretamente dele, apenas a sua idéia espalhada por uma dezenas de autores reformados e calvinistas].
Mas, de certa forma, foi difícil conter o desejo de abrir o "Livre-Arbítrio" e ler quais são os argumentos do autor sobre o tema.
Já escrevi alguns textos a partir de conceitos que muitos autores confessam ser o "esquema" de Agostinho sobre a questão: a liberdade de pecar e não pecar do homem antes da Queda, depois da Queda, depois da Regeneração e quando da glorificação. Expus minha opinião também nos comentários ao livro "Eleitos de Deus" de R.C. Sproul que podem ser lidos neste blog.
Ao receber a encomenda, quase não foi possível resistir ao L.A. de Agostinho. Mas resisti, pela graça de Deus. E acho que a melhor opção foi iniciar pelo "Confissões".
E é o que farei daqui para a frente, em concomitância com os outros dois livros que ainda estou a ler, a T.S. do Cheung, e o "Milagres de Jesus".
Terminei a leitura do Livro I, do Confissões, e a impressão foi muito, mas muito boa. Tanto que enquanto lia fiz umas três páginas de anotações relevantes, e nem mesmo sei se poderei postar todas aqui. Se não der para fazer um comentário uma a uma, tentarei ao menos citá-las.
Como estou me preparando para o culto noturno, deixarei para tecer os comentários no decorrer da semana.
Mas preciso dizer algo: A profusão de referências explícitas e implícitas à Bíblia, a visão da soberania divina, a majestade e poder de Deus, não deixam dúvidas do coração que Agostinho possuía, após a sua conversão. O livro foi escrito exatos 10 anos após ela acontecer. E fica clara a sua sujeição a Deus e à palavra, ainda que haja pontos e conclusões do autor com os quais não concordo, decorrentes dos efeitos da Queda, tanto nele, como em mim, como em qualquer outro eleito.
Nas lembranças da infância, ele relaciona toda a sua existência como advinda de Deus; tanto o bem como o mal (ele abre exceção quanto ao pecado, o que discutiremos mais à frente).
Ainda que não sejam conclusões discutidas exaustivamente, suas posições tornam-se claras no contexto do tópico proposto. Sem jamais ser superficial.
A sua vida está tão intrisecamente ligada a Deus que não é possível discorrer sobre qualquer ponto sem reportá-la ao senhorio divino.
Por exemplo, ao falar em "Deus é inefável", o autor aponta para a imutabilidade divina; e diz: "Deus está em todas as coisas e nenhuma o contém" (pg 21).
Não há a idéia de que ele está a insinuar alguma forma de panteísmo? Não é esse o princípio panteísta de que Deus está em tudo, e tudo é Deus?
Porém, no rodapé, há o comentário de que a palavra contém refere-se a sustentar, conservar, dar ânimo, vida, força. A fim de dirimir eventuais dúvidas, como a minha, e para os que não estão habituados à teologia de Agostinho.
De qualquer forma, não só essa questão do falso-panteísmo mas outras, podem gerar dúvidas.
No geral, e é isso que importa, pois Agostinho, como qualquer um de nós não é a palavra final, mas apenas a tentativa de explicar a revelação escriturística. E os acertos, ao menos no primeiro livro, são muito, mas muito maiores do que eventuais erros (ao menos, os que suponho haver).
Um estilo do autor, do qual gosto e uso frequentemente em meus textos, é o de se fazer muitas "autoperguntas", sem necessariamente dar as respostas. São inquirições que já têm embutida uma resposta, ou a proximidade dela.
Para falar da imutabilidade divina, Agostinho refere-se à obra de Deus como sendo algo "nunca novo"; "és tu o ser supremo, e não mudas"; ou que Ele pode "mudar as coisas sem mudar o seu plano" (pg. 22).
Para falar de Deus como o Ser infinito e eterno, diz; "'Tu, porém, és o mesmo eternamente', e todas as coisas de amanhã e do futuro, de ontem e do passado, hoje as farás, hoje as fizeste!" (pg 26-27), ecoando o ensino do Sl 102.27 e Hb 1.12.
Alguns questionamentos podem reportar a dúvidas, como por exemplo, a reencarnação: "Existi, porventura, em qualquer parte, fui alguém?" (pg 25-26); porém, novamente, a nota de rodapé dá o correto entendimento: "Alude à doutrina da pré-existência da alma"; doutrina essa com a qual não concordo, mas que muitos cristãos e ilustres teólogos defendem.
"Alguém pode ser autor de sua própria criação?" (pg 26); ao referir-se à criatura, mostrando a impossibilidade de qualquer coisa existir aparte de Deus, o qual sendo não-criado é o único autor de tudo o que foi criado.
Percebi algumas semelhanças estilísticas entre Confissões e o Peregrino, de John Bunyam.
"Porque és o seu Criador, e não o autor do seu pecado" (pg 27).
Agostinho refere-se a Deus como o Criador do homem, e de todas as coisas, até mesmo o mal, mas em hipótese alguma pode ser considerado o autor do pecado. Na verdade, há duas formas de se ver a questão:
1)Deus pode ser considerado o autor do pecado ao decretá-lo e determiná-lo na eternidade. Ou seja, mesmo antes da criação do homem, todos os seus atos e pensamentos foram estabelecidos por Deus dentro do decreto eterno. Nesse sentido, Deus é o autor do pecado, porque se não fosse determinado divinamente, ele não aconteceria.
2)Mas Deus não peca, porque quem comete o pecado é a criatura, anjos ou homens. Nesse sentido, Deus não é o autor do pecado.
"Senhor, meu Deus, ordenador e criador de tudo o que existe na natureza, com exceção do pecado, de que és apenas regularizador"(pg 32).
Aqui temos Agostinho excluindo Deus da criação do pecado, mas tornando-se uma espécie de fiscal a regularizá-lo. Essa idéia se aproxima muito do dualismo, trazendo a seguinte reflexão: Se Deus não criou o pecado, o pecado veio a existir por outra força, uma força tão poderosa que agiu alheio à vontade divina. Nesse aspecto, como poderia Deus regularizá-lo? Se não o criou, Deus foi investido por alguém com poderes que não tinha para agir como um fiscalizador. Mas, ainda que fiscal, as regras não foram estabelecidas por Ele, mesmo que se alegue a autocriação do pecado. Desta forma, está formada a idéia antibíblica do dualismo, de que há outro "Deus", quando a Bíblia claramente afirma que existe somente um Deus, o Deus vivo e Todo-Poderoso revelado na Escritura.
Portanto, as implicações dessa afirmação de Agostinho tornam complicadas a doutrina da soberania divina. Além do quê, favorece sobremaneira outra idéia antibíblica: o livre-arbítrio. Sei que Agostinho escreveu um livro tratando do assunto (comprei-o também), e, ao que sei, defende o livre-arbítrio do homem antes da Queda e depois da regeneração. Mas, o que seria o livre-arbítrio senão outro deus? Não seria uma força confrontadora, opositora, capaz de frustrar a Sua vontade? É isso que o livre-arbítrio se propõe: ser uma força independente e autônoma, a qual pode ir contra a vontade do Todo-Poderoso, impedindo de realizá-la.
Outro problema no esquema de Agostinho é de que o homem sempre terá o poder de escolher o mal, mas o bem realizado será por influência divina. Em outras palavras, o bem que vem de Deus, quando ausente, resultará no mal; o mal como a ausência, a supressão do bem. Seria o mal apenas a ausência do bem? E, sendo o bem proveniente de Deus, é possível que Deus não esteja em todos os lugares e assim o mal possa emergir do nada? Agindo livremente alheio à Sua vontade?
São conflitos que a teologia de Agostinho impõe as Escrituras, ao lê-las com lentes, digamos, não tão bíblicas, ainda que corroborada por uma legião de crentes.
Sobre o pecado original, fruto da Queda: "já que ninguém há que diante de ti seja imune ao pecado, nem mesmo o recém-nascido com um dia apenas de vida sobre a terra" (pg. 27).
Os questionamentos nesse capítulo estão sempre voltados para a explicação da natureza caída e corrupta do homem, desde o berço, desde o seio materno.
"Que exulte e prefira encontrar-te, não te compreendendo, a não te encontrar, compreendendo".
Ainda que poética, e bela, a afirmação é despropositada e não-bíblica. Pois, ao contrário do que a Bíblia afirma, não se é possível encontrar a Deus sem conhecê-lo, e vice-versa. Mas como Agostinho não se prontificou a explicá-la...
"Socorre os que te invocam, e socorre também aqueles que não te invocam, a fim de que também eles o façam e seja libertados" (pg 33). Uma oração em que o autor clama a Deus por misericórdia para com todos.
"Apressava-me em iniciar-me e purificar-me nos sacramentos da salvação, para que, confessando-te, Senhor Jesus, eu pudesse obter a remissão dos pecados" (pg 33).
Fico a me perguntar: o que vem a ser sacramentos da salvação? E é-se possível purificar-se neles? E somente então confessar a Cristo, e obter a remissão? É um esquema conflituoso, ainda que, como disse antes, Agostinho não se apresse em explicá-lo (na verdade, nem sei se o fará). Cheira-me a salvação por obras, por justiça própria; ainda que o argumento do autor não seja exposto clara e detidamente; não passando de uma citação (provavelmente esmiuçada em outra de suas obras).
"A amizade a este mundo é de fato adultério, prevaricação e infidelidade a ti" (pg 36).
"Enquanto eu me apegava aos piores objetos da tua criação, abandonando-te"(pg 36). O problema é definir o que seja "piores objetos da tua criação". Estaria o autor se referindo ao mal e o pecado? Ou como a nota de rodapé indica indefinidamente a "morte" ou "criaturas inferiores"?
Ao meu ver, Agostinho usa o termo para se referir ao mal e ao pecado, como as piores criações divinas. Mesmo que seja a morte, há de se convir que ela é uma criação, não existe apenas como consequência do pecado autocriado, pois, se assim fosse, seria igualmente autocriada. E não seria possível a Deus ser completamente soberano se tantas coisas pudessem surgir do nada, ainda que apenas uma delas.
Por isso a morte, o pecado, o mal, são criações divinas, ainda que não as considere "piores" tendo-se em vista que tudo o que Deus criou é bom. Pois mesmos essas "piores criações" cumprem o soberano, santo e perfeito propósito divino; e talvez este seja o nosso grande erro: ver as coisas em partes, em suas particularidades, e não observá-las no todo, assim como Deus as vê. E assim, vislumbrar o plano de Deus em sua totalidade, como bom, perfeito e santo; mesmo que nele esteja contido o mal, o pecado, a morte.
Uma oração que exalta e glorifica a Deus, e que cada um de nós deveria examinar e se deter em sua mensagem é o capítulo 20 do livro 1 (pg. 45-46), intitulada:"Tudo é dom de Deus"; onde Agostinho louva-o por ter lhe dado tantos dons, apesar dele buscar erroneamente nas criaturas (nele mesmo e nas outras) "os prazeres, as honras e a verdade" somente possíveis de se encontrar no Senhor. Com isso, ele se precipitava "na dor, na confusão e no erro"(pg. 46).
E esta é uma grande verdade bíblica.
Livro II
Neste livro, Agostinho trata do pecado, mais especificamente, dos seus pecados. O tema é a depravação humana a partir dos seus exemplos pessoais e da experiência(!) pecaminosa adquirida; do seu afastamento de Deus; da sua desobediência à lei divina; do gozo e prazer com tudo o que se podia configurar "mundano".
Agostinho abre a sua alma a Deus; o livro é uma grande oração, onde o seu coração é posto no lugar adequado: em Cristo, sua misericórdia e sacrifício.
Ele tece um longo poema em que as palavras fluem ritmadas; em que busca as mais profundas e límpidas expressões para retratar o que sentia à época em que era incrédulo, e também da sua alegria após a conversão e a reconciliação com Deus. Seu "Confissões" é um fluir e brotar do espírito quebrantado e submisso ao Senhor.
Não há a preocupação em explicitar a teologia, ainda que ele faça teologia no livro. Não há lugar para o debate teológico, ainda que se possa discutir suas idéias. Por exemplo, ao afirmar que a cada dia se afastava mais de Deus, podemos entender que:
1)Havia um distanciamento maior, uma impossibilidade de se aproximar dEle; e de que se encontrava cada vez mais afastado, a partir do afastamento inicial.
2)Ou pode-se ter a impressão de que em algum momento o homem esteve próximo de Deus, e, com o decorrer dos dias e dos pecados, vai-se afastando dEle.
Aqui, nitidamente, Agostinho aponta para o conceito 1), a partir da separação inicial o homem vai-se distanciando-se ainda mais da comunhão e santidade divinas.
Há de se entender que Agostinho acreditava na doutrina da pré-existência da alma, o que pode levá-lo a crer, em algum momento, que essa alma estava com Deus. Ao encarnar-se, assumindo a carne, ela irá afastar-se de Deus, em virtude do pecado original.
De qualquer forma, sem entrar em todos os pormenores que envolvem a questão, a afirmação de que quanto mais o homem peca, mais se afasta de Deus, é bíblica e correta. Apenas esse homem já está afastado, nunca teve comunhão com o Senhor, e labora para ir ainda mais para longe dEle.
Em toda a sua vida iníqua, em que o prazer ilícito e o desejar desfrutá-lo trazia-lhe uma alegria fortuita, ele reconhece a misericórdia divina em perdoá-lo de todos os seus pecados; reconhece a obra de Deus em resgatá-lo da podridão em que se encontrava; e, ao experimentar o amor e a graça de Deus, percebeu a perenidade desse amor e da felicidade advinda dele, e a fugacidade daqueles outros "amores".
"Eis o meu coração, Senhor, o coração que olhaste com misericórdia no fundo do abismo. Que o meu coração te diga, agora, o que procurava então, ao praticar o mal sem outro motivo que não a própria malícia" (pg. 55).
O autor declara o estado em que se encontrava antes da conversão, o estado de impiedade; um aliado do mal; um coração aprisionado e atormentado, antes de Deus retirá-lo, por Sua misericórdia, do fundo do abismo.
As declarações que se seguem, e as descrições que as acompanham, indicam uma alma depravada e impossibilitada de se aproximar de Deus; a cada dia mais envolvida com o pecado, desejando-o; e desprezando a Deus; afastada dEle.
Agostinho afirma a quase suficiência das obras más na vida do homem caído: "As próprias obras é que prejudicam os malvados" (pg 58). Mas em qual sentido? Estariam elas independentes da vontade do homem? Seriam maiores que ela? Ou até mesmo o homem? Ou ao se concretizarem, sendo obra consumada (a realização temporal, prática, efetiva do pecado) é que os tornaria em homens perversos?
Agostinho considera o homem que comete tais obras como já sendo maus. Não há bondade neles, e o que acontecerá, nada mais é do que a vazão pecaminosa indicando-lhe o caminho da perdição e do pecado.
Ao citar o dia em que ele e os amigos invadiram uma propriedade e furtaram pêras, pelo simples prazer do furto, para lança-las fora, resumiu: "O fato é que não eram os frutos que me atraíam, mas a ação má que eu cometia em companhia de amigos que comigo pecavam" (pg 61).
Claramente, ele notifica não a fome, nem a beleza dos frutos, nem o seu sabor, ou o desejo de ganhar algum dinheiro com eles, nada disso. Agostinho nos fala apenas da ânsia de cumprir na sua carne o mal que habitava nela; a realização do desejo suficiente em si mesmo, e vivendo por si mesmo.
Mas há nele, agora, o arrependimento: "Eu, miserável, que frutos colhi das ações que cometi então e que agora recordo envergonhado, especialmente daquele furto que me satisfez pelo furto em si e nada mais? De fato, ele em si nada valia, e por isso me tornei ainda mais miserável!" (pg 61).
Para em seguida perguntar (sentenciando): "Quem me pode responder senão aquele que me ilumina o coração e lhe dissipa as trevas?".
Falando da paz pela santidade, conclui: "Quem mergulha em ti, 'entra no gozo do seu Senhor', não terá mais receio, e permanecerá sumamente bem no Bem supremo.
Desandei longe de ti, meu Deus, e na minha adolescência andei errante sem teu apoio, tornando-me para mim mesmo um antro de miséria"(pg 62).
Interessante perceber que o homem natural não muda. Os seus anseios e projetos são os mesmos falhos e falsos, uma busca desesperada pelo prazer, trilhando o caminhos pecaminosos que o levará à ruína, ou mante-lo-á neles.
Passados séculos e mais séculos desde Agostinho, o homem não mudou em suas atitudes estúpidas e distantes da perfeição divina, onde o erro é o agravo da alma caída. Apenas Cristo pode retirar o homem de onde ele está, e transportá-lo para o Seu reino santo e perfeito; como Agostinho disse: "Mesmo os estudos a que me entregava, chamados de liberais, tinham seu curso voltado para o foro litigioso, para se obter sucesso, e quanto mais fraude se comete, mais glória se granjeia. Tão cegos são os homens, que chegam a gloriar-se da própria cegueira!" (pg 69).
O mal insurgido por satanás e seus demônios, fará com que os "arruaceiros" sejam "os primeiros a serem destruídos e pervertidos pelos maus espíritos, que ocultamente deles escarneciam, seduzindo-os com os mesmos enganos com que gostavam de ludibriar e enganar os outros" (pg 69). "Pois eu não sabia que o mal é apenas privação do bem, privação esta que chega ao nada absoluto" (pg 75).
Esta última afirmação de Agostinho não me convence. O mal não pode ser o nada absoluto, nem o nada absoluto resultar num mal absoluto. O "nada" nada pode criar, nem dele resultar efeito algum. Da mesma forma, dizer que o mal é a privação do bem, implica que o mal assim como o bem podem ser autocriados. Acontece que, se o bem é proveniente de Deus, o mal é proveniente do que? Da ausência de Deus? Mas estaria Deus ausente de algum lugar? Poderia haver algum espaço onde Ele não esteja presente? Ou alguma "energia" ou "força" que subsista alheia a Ele? A Bíblia afirma que tudo, completamente tudo, subsiste pelo poder da palavra, a qual é Cristo. Por Ele tudo foi criado, existe e subsiste. Portanto, parece-me ilógica essa assertiva, a menos que ela tenha um cunho simbólico, figurado, seja uma metáfora para que se entenda o mal. Ao meu ver, os ímpios foram criados para o mal, a fim de exercê-lo e praticá-los, e por isso, serão condenados. Se eles foram criados com esse propósito, o mal que eles praticam também. Logo, Deus criou-os objetiva e determinadamente, cumprindo os Seus santos e perfeitos propósitos.
Dizer que o mal é a ausência absoluta do bem, e de que isso seja o nada absoluta, representa dizer que ele não existe, nem é praticado, nem produz os efeitos pelos quais o Senhor o criou.
Agostinho, parece-me que em sua doxologia a Deus, pretendia salvaguardá-lo da criação do mal, e, para isso, utilizou-se de um raciocínio falacioso.
Porém, quanto à natureza caída do homem, que se inclina, almeja, deseja, e se deleita na prática do mal, do pecado; quanto à depravação do homem, e sua responsabilidade perante Deus, concordo em gênero e número com o autor.
Agostinho gosta um bom número de páginas a se referir aos hereges que se infiltraram no Corpo, na Igreja, com duas filosofias e doutrinas diabólicas. Em especial se refere à seita a qual participou antes de sua conversão: o maniqueísmo. Sem entrar em todos os pormenores e detalhes, mas revelando a malignidade de certos homens que se utilizam da falsa piedade e sabedoria para enganar e difundir suas heresias.
Desde muito, ele estava disposto a combatê-los em favor da verdade: o Evangelho de Cristo.
Outro ponto interessante é a afirmação de que mesmo os homens mais sábios, mais cultos, cheios de letras, sem a revelação divina e especial, sem o encontro com Cristo e Sua graça e misericórdia, eles não passarão de homens tolos, enredados pela mentira.
Ainda aponta para a soberba e orgulho como o principal inibidor para se conhecer a Deus. Homens cheios de si mesmos, vaidosos com o sucesso, com o seu conhecimento, não reconhecem em Deus a fonte dos seus dons e conhecimento, como Aquele que é o doador de tudo e todas as coisas, o qual torna tudo possível.
Voltando à questão do bem e do mal,
parece-me que a idéia agostiniana sobre o bem resume-se à presença de Deus, enquanto o mal, nada mais é do que a ausência de Deus. Contudo, ele mesmo afirma que não há universo possível para contê-lo (Deus), mostrando a sua infinitude. Então, como o mal surge a partir da não-presença de Deus?
Em algum sentido, o autor parece defender a idéia de que o homem já esteve com Deus (provavelmente pela doutrina da pré-existência da alma antes da concepção), e que este homem está corrompido pela ausência de Deus. Em parte é verdade, pois o não-conhecimento divino não pode aproximar o Criador da criatura. Mas a idéia de um "retorno" a Deus não subsiste, a não ser nesse esquema pré-existente de Agostinho.
O que não chega a ser um problema, tendo-se em vista que a linguagem cristã aponta para uma "reconciliação" do eleito, no tempo, com Cristo, o Senhor.
O que dá para afirmar é que até onde estou lendo (pg. 130), Agostinho é bíblico, a despeito de eu ter algumas divergências com ele, as quais podem ser aparentes.
Olá, meu caro!
Fico feliz que esteja lendo o mestre!
Li apenas por alto seus comentários, mas vejo que você está aproveitando bem a leitura. Fez bem em iniciar pelas Confissões.
Apenas um ponto que me chamou a atenção nesta "leitura por alto": até onde me lembro, Agostinho nega a preexistência da alma.
Ah, e outra coisa: Agostinho escreveu as Confissões muito mais com o objetivo de apresentar a Verdade do Evangelho que de fazer uma autobiografia. É que sua jornada pessoal se confunde com o que ele entende ser a jornada do intelecto rumo a Beata Vita!
Grande abraço, meu querido. No Senhor,
Roberto
Roberto,
que bom que o irmão está de volta, depois de andar sumido...
Já percebi que Agostinho escreveu um livro teológico, ainda que alguns pontos (ao menos para mim) não pareçam muito claros. No meu primeiro comentário, coloquei autobiografia entre aspas, exatamente por não considerar o livro uma autobiografia clássica. Ele se utiliza de exemplos pessoais para descrever verdades bíblicas, como você apontou.
Em relação à preexistência da alma, baseei-me apenas no Confissões, e foi o que ele pareceu indicar. Como o irmão é um estudioso do autor, fico com a sua afirmação de que ele não cria na preexistência da alma. É que muitos teólogos cristãos acreditam nesse ponto, e pensei que ele também acreditava.
No mais, obrigado pela indicação de Agostinho em seu blog, e por me estimular a lê-lo através de seus textos.
Grande abraço, meu amigo!
Cristo o abençoe!
Depois de passar a metade do livro, a impressão que "Confissões" me deixa é de uma obra muito mais complexa do que eu imaginava no início da leitura.
O autor passeia por vários assuntos dentro da sua perspectiva de apresentar Deus e o Cristianismo, e nem sempre elas são explicadas minuciosamente. Para uma mente brilhante como a de Agostinho é de se esperar que ele não se preocupasse demasiadamente em explicar o que, para ele, era claro.
Há conceitos filosóficos que não consigo apreender. Tenho uma mente muito mais teológica que filosófica, o que me faz ver clareiras nas exposições de Agostinho; sabendo que elas se devem mais à minha ignorância do que ao possível hermetismo do autor, o que o texto não tem.
Por exemplo, a questão do mal parece um dilema quase insolúvel, um quebra-cabeças em que as peças não se juntam, e, acredito que seja pelo fato dele tentar entender a questão sem a luz do Evangelho, meio que querendo montá-lo em meio à escuridão.
Vamos a um trecho que pode clarear o que estou dizendo:
"Vi claramente que as coisas corruptíveis são boas. Não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, ou se não fossem boas. Se fossem absolutamente boas não seriam corruptíveis. E se não fossem boas, nada haveria a corromper. A corrupção de fato é um mal, porém, não seria nociva se não diminuísse um bem real. Portanto, ou a corrupção não é um mal, o que é impossível, ou - e isto é certo - tudo aquilo que se corrompe sofre uma diminuição de bem... Todas as coisas, pelo fato de existirem, são boas. E aquele mal, cuja origem eu procurava, não é uma substância. Porque, se o fosse, seria um bem. Na verdade, ou seria substância incorruptível, e portanto um grande bem, ou seria substância corruptível, e então, se não fosse boa, não se poderia corromper. Desse modo, vi e me pareceu evidente que criaste boas todas as coisas, e que nada existe que não tenha sido criado por ti" [Pg 191-192].
Por mais que eu tente encarar o trecho de Agostinho com bons olhos, fica-me parecendo muito aquém da revelação escriturística, e um certo malabarismo em tentar explicar a existência do mal. No fundo, a sua reflexão não explica a questão, deixando-a no ar, ainda que afirme que todas as coisas foram criadas por Deus, mas em algum momento, essas coisas criadas boas, se corromperam pela substância de que eram feitas, ou por algum outro motivo desconhecido. Isso é tirar de Deus a sua onipotência e soberania, de sujeitar tudo a Si, tudo o que criou, mesmo o mal.
[continua]
[...]
Alguns de seus questionamentos:
"Assim imaginava eu a tua criação, limitada, mas cheia de ti, que és infinito... Mas de onde vem o mal, se Deus é bom e fez boas todas as criaturas? Ele é certamente o sumo bem, e as criaturas são bens menores. Mas, criador e criaturas, todos são bons. De onde então vem o mal? Porventura da matéria que ele usou? Haveria nela algo de mal, e Deus, ao dar-lhe forma e ordem, teria deixado algo por transformar em bem? E por que teria procedido dessa maneira? O Onipotente teria sido impotente para convertê-la, de modo que nela não permanecesse mal nenhum? Enfim, por que empregou essa matéria, ao invés de usar sua onipotência para reduzi-la ao nada? Poderia ela existir contra a vontade dele? Ou se a decisão de agir foi repentina, por que sua onipotência não a reduziu ao nada, para que subsistisse apenas ele, verdadeiro, sumo e infinito bem? Ou se não era bom que a Bondade deixasse de realizar coisas boas por que não aniquilou a matéria má reduzindo-a ao nada, estabelecendo outra que fosse boa e com ela criando todas as coisas? Que onipotência era a sua, se não podia criar algo de bom sem o auxílio de matéria não criada por Ele?"[pg 179-180].
Por confusões como essas, ainda que sejam questionamentos que eu mesmo tenho ao pensar sobre a questão, e que podem existir na mente de qualquer um, satisfaz-me saber que a Bíblia tem a resposta, e de que ela é muito clara, e propositiva, ao afirmar ser Deus o criador de todas as coisas, inclusive o mal; de que nada foi criado alheio à Sua vontade, inclusive o mal; de que tanto o mal, o pecado, como a Queda são partes do Seu plano eterno, o decreto eterno, e de que não há a menor possibilidade de alguma coisa existir fora ou alheio à Sua vontade. Não há matéria preexistente; tudo existe após Deus criá-la; não há matéria eterna, pois apenas Deus é eterno.
O bom de se ler autores como Agostinho é que, mesmo quando eles não nos reportam às Escrituras, sabemos que é lá que devemos buscar as respostas.
Sobre as criaturas, ele diz:
"Observando as outras coisas que estão abaixo de ti, compreendi que absolutamente não existem, nem totalmente deixam de existir. Por um lado existem, pois provém de ti; por outro não existem, pois não são aquilo que és. Só existe realmente aquilo que permanece imutável. 'Bom para mim é apegar-me com Deus', porque, se eu não permanecer nele, tampouco poderei permanecer em mim mesmo. 'Ele, imutável em si mesmo, renova a todas as coisas. Tu és o meu Senhor, porque não tens necessidade de meus bens'".
Novamente, tem-se a idéia de que, no tempo, após as coisas criadas existirem, houve um "acidente" ou processo em que elas quase deixaram de existir por se corromperem, e não mais são o que Deus quis que fossem. Há um elemento de mistério, e surpresa na ordem criada por Deus. Como se Ele fosse pego desprevenido, e tivesse de criar um plano extra para pôr tudo em ordem novamente. Se estou interpretando corretamente, não posso concordar com Agostinho. Esse argumento é contrário à Escritura.
Diálogo de um "Sem-igreja" com um crente, neste caso, Vitorino e Simpliciano, transcrito por Agostinho:
Vitorino: "Sabes que já sou cristão"?
Simpliciano: "Não acredito, e não te considerarei entre os cristãos enquanto não te vir na Igreja de Cristo".
Vitorino, replicava-lhe, sorrindo: "Mas então, as paredes da igrejas é que nos fazem cristãos"?
E repetia muitas vezes que era cristão.
Passado algum tempo, Agostinho escreveu ainda sobre Vitorino: "Mas depois, lendo e relendo, chegou a uma decisão: temeu ser negado por Cristo diante dos santos anjos, se receasse confessá-lo diante dos homens. Sentiu-se culpado de grave crime por envergonhar-se dos sagrados mistérios de humildade do teu Verbo, e não envergonhar-se dos ritos sacrílegos dos soberbos demônios que ele, em sua soberba aceitara imitar. Perdendo todo o receio humano diante da mentira e corando diante da verdade, disse inopinadamente ao amigo, como conta Simpliciano: 'Vamos à igreja, quer tornar-me cristão'. Este, não cabendo em si de alegria, o acompanhou imediatamente" [pg 209].
É engraçado ver que os argumentos aos que resistem à Bíblia não mudaram. Continuam o mesmo, com o mesmo objetivo: dar uma falsa aparência de autonomia ao homem, e não ser sujeito a Deus.
Alguma semelhança com o crescente movimento dos "sem-igrejas" dos nossos dias?
Agostinho é conhecido como um dos "pais da graça", no sentido de que não via a menor possibilidade do homem ser salvo se não pela graça de Deus. Lutero e Calvino beberam de seus textos, para formatarem aquilo que Agostinho vira no Evangelho.
Porém, quanto ao batismo, ele reconhece o seu efeito regenerador, ao qual Paulo chama de "obras de justiça humana". Senão, vejamos o que ele diz acerca de um irmão(Vitorino) que estava a se batizar: "Foi aí iniciado nos primeiros mistério da catequese e, pouco tempo depois, deu o nome para regenerar-se no batismo, para admiração de Roma e alegria de toda a Igreja" [pg 209].
Parece que a regeneração veio pelo batismo. Mas ele não se tornará cristão antes? A contradição está em se ser cristão sem ser regenerado. A despeito da graça de Deus, parece que havia um estado em que o homem "aceitava" a Deus, para então, posteriormente, no batismo, ser regenerado por Deus. Logo, a salvação viria não na aceitação anterior, mas no passar pelas águas.
Daí procedem as doutrinas católicas das ordenanças, como meio de salvação, o que, felizmente, não foi reconhecido pelos reformados, ainda que um pouco desta doutrina esteja impregnada tanto no batismo como na ceia, já que apenas os participantes delas estão sob os efeitos da graça de Deus. Não que todos sejam salvos, mas os salvos necessariamente precisam receber o batismo e a ceia.
Faltando poucas páginas para terminar o livro, posso assegurar que é uma leitura agradável e altamente reflexiva. Agostinho passeia por diversos temas teológicos, alguns descritos acima, e, mais para o fim do livro, atem-se a inquirições, meditações, e a dar algumas respostas quanto ao tempo, a criação e o Criador, à Trindade, etc, sem se esquecer da fé, do Evangelho, da salvação, e do amor de Deus para com os eleitos.
Confissões é um livro que requer muitas leituras. A mente do bispo de Hipona era privilegiada, como dom de Deus ao Corpo, e muitas das suas reflexões precisam ser "ruminadas" e digeridas corretamente. Não é perfeito em suas posições, há erros como alguns apontados acima, mas os acertos são infinitamente maiores.
Confissões é um livro facilmente recomendado, com louvor.
Alguém pode perguntar porque não dei 5 estrelas ao Confissões. Por vários motivos eu poderia dá-las, mas como o meu foco sempre é e será teológico [em que o livro se conforma ou não com a Escritura], e por haver alguns erros doutrinários como a regeneração batismal, por exemplo, dei-lhe as 4 estrelas.
Termino os meus comentários com o último parágrafo de Confissões:
"Que homem será capaz de fazer que outro homem compreenda essas verdades? Que anjo a outro anjo? Que anjo a um homem? É a ti que devemos pedir, é em ti que devemos buscar, é à tua porta que devemos bater. Assim, somente assim receberemos, somente assim encontraremos, somente assim nos será aberta a porta" [pg 450].
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