Nestes últimos anos, além de vários artigos e ensaios, tive
a oportunidade de ler “Eichmann em Jerusalém”, “Homens em tempos sombrios”, “Origens
do totalitarismo”, “O que é política” e, neste exato momento, tenho em mãos a
última obra escrita por Aredt, lançada após sua morte, “A vida do espírito”,
leitura que já estou tendo o prazer de fazer. Pretendo ler também sua obra
inaugural “O conceito do amor em Santo Agostinho”, ainda neste ano, se Deus
quiser. Aliás, descobri que essa primeira obra filosófica de Arendt recebeu
críticas terríveis de Karl Jaspers, seu orientador e amigo de sempre. É muito
interessante acompanhar não apenas o contexto histórico, mas, principalmente,
as características da personalidade da jovem filósofa de apenas 22 anos de
idade que contribuíram para as críticas recebidas sobre sua tese em
Agostinho.
Por tudo isso, ler a biografia “Nos passos de Hannah Arendt”
foi uma experiência apaixonante, particularmente por Laure Adler oferecer um
roteiro bibliográfico de formação da Hannah Arendt. Assim, podemos acompanhar,
durante cada etapa da vida da filósofa, os livros que ela lia, os autores que
devorava, os poetas nos quais ela se refugiava nos tempos difíceis. Adler
também vai marcando, passo a passo, o momento em que Hannah escrevia seus
artigos, ensaios e livros. Resultado? Preciso reler o livro de Laure Adler,
fazendo esse roteiro bibliográfico de Hannah, sobretudo agora que foi lançado o
“Escritos judaicos”, obra que reúne os artigos de Hannah Arendt até os anos 60.
Acredito que meus primeiros contatos com Hannah Arendt se
deram ainda na Faculdade de Letras, por causa de seus escritos na área de
educação americana, nos quais ela criticava a postura vitimista da comunidade
negra e o que ela considerava um uso errado das crianças negras por seus pais
na luta pelos direitos de ir à escola dos brancos, colocando essas crianças em
situação de risco. Hannah não acreditava que o racismo deveria ser combatido
com criação de leis antirracistas, pois estas teriam um efeito contrário na
sociedade. Obrigar por meio da lei as crianças negras a frequentarem escolas de
brancos, lugares em que elas eram humilhadas, maltratadas e indesejadas
levanta, para Arendt, a indagação se valeria a pena “forçar o real e deixar
essas crianças viverem o inferno, em nome de uma luta contra a segregação,
impor que elas se tornassem os heróis da luta antirracista”. Hannah foge sempre
dos clichês politicamente corretos e denuncia que “há também uma derrota de
autoridade dos adultos, que abdicam de sua responsabilidade ao delegar ao
Estado a preocupação em se ocupar de seus próprios filhos”. Hannah pergunta:
“Será que chegamos ao ponto de pedir às crianças para mudar o mundo ou
melhorá-lo? Será que procuramos conduzir nossas batalhas políticas no pátio de
recreação das escolas?”.
Esta é Hannah Arendt: uma filósofa que resolveu pensar em
tempos sombrios e que, certamente, arcou com as consequências de fazer
perguntas tão obscenas quanto “os judeus são responsáveis por seu extermínio?”.
Para Hannah, o “mecanismo de apagamento voluntário do ser judeu precedeu e
talvez tenha autorizado o Holocausto”. O livro de Adler, portanto, é uma imensa
narrativa sobre os embates, guerras, tragédias, genocídios e assassinatos
vividos e refletidos por essa judia nascida alemã em pleno século XX.
Adler nos dá o contexto dos judeus que, por tanto tempo,
ainda no século XIX, lutaram pelo direito de serem recebidos como cidadãos na
Alemanha, mas que, repentinamente, seus filhos veriam crescer no século
seguinte o movimento do Nacional-Socialismo e sua política antissemita. Judeus
ou alemães? Essa crise de identidade acompanhará aquela geração de judeus
alemães que cresceram junto com Hannah Arendt.
“Nos passos de Hannah Arendt” retrata muitíssimo bem toda a
polêmica que acompanhou Hannah diante da publicação de “Eichmann em Jerusalém”,
obra jornalística em que ela expõe a cooperação dos Conselhos Judaicos na
confecção das listas dos que seriam mandados para a morte nos Campos de
Extermínio dos nazistas. Embora essa cooperação já fosse do conhecimento dos
tribunais e governos antes mesmo do próprio julgamento do nazista Eichmann, ela
expõe o fato de uma maneira que a indispõe com muitos dos líderes e anciãos
judeus da época ao ponto de vários rabinos escreverem às comunidades judaicas
orientando-as para que, durante a comemoração do Ano Novo, elas pregassem
contra Hannah Arendt. Laure Adler pinta com todas as graves cores a
perseguição, o ódio, a difamação e injustiças sofridas por Hannah, que foi
criticada muito mais pelo que disseram que ela disse (mas não disse) do que
pelas coisas que, de fato, escreveu. Adler, porém, não esconde as falhas, os
erros, as contradições e o orgulho de Hannah Arendt. O próprio fato de, como
conselheira editorial, ela ter impedido a publicação, antes do lançamento de “Eichmann
em Jerusalém”, do livro do historiador Raul Hilberg, que já apresentava toda a
documentação sobre a cooperação dos Conselhos Judaicos ao regime nazista,
demonstra estes traços negativos da filósofa.
É em “Eichmann em Jerusalém” que Hannah Arendt apresenta o
seu famoso conceito de “banalidade do mal” ao defender que o ser humano não
precisa ser “mau” para praticar a maldade, fugindo das caricaturas tão
propagadas do louco nazista ou do sádico de suástica e também do funcionário
público estúpido. Ela percebe que qualquer um de nós, “pessoas comuns”, podemos
cometer as atrocidades que foram empreendidas por pessoas como Eichmann. Ao
desenvolver essa tese, Hannah quer refletir sobre três coisas: 1) a natureza do
mal; 2) como evitar que um novo genocídio ocorra de novo; e 3) o que leva
pessoas comuns como Eichmann a se tornarem uma peça numa engrenagem assassina.
A partir desse conceito de “banalidade do mal”, Hannah
demonstra que a origem das ações criminosas perpetradas por pessoas como
Eichmann reside no momento em que elas abdicam
do seu direito de pensar, entregando-se à moral fornecida pelo Estado por meio
da lei. Elas abrem mão da própria consciência, abrem mão de refletir, de
pensar, de julgar. Para Hannah Arendt, portanto, o ser humano, qualquer ser
humano, torna-se agente do mal quando não reflete, não pensa, quando abre mão da
própria consciência e adota, enfim, a moral do Estado ou do grupo.
Particularmente, entre as contradições da filósofa, a que
mais me chamou a atenção foi que, na vida amorosa, Hannah Arendt aceitou a
submissão a dois homens abertamente contrários à causa judaica: Heidegger e
Heinrich. O primeiro, filósofo que aderiu ao Nazismo e fechou as portas da
Universidade para professores judeus, foi amante de Hannah. O segundo foi seu
marido e, como comunista, nunca apoiou as causas judaicas, sempre se apresentando
avesso às lutas sobre o Estado de Israel.
Ainda por causa da sua experiência com Eichmann, ela
escreverá sua última obra sobre o pensar, sobre a vida do espírito. O ato de
pensar é a única saída para que o ser humano não repita mais os crimes terríveis
perpetrados por regimes totalitaristas. É preciso, então, que o homem reflita,
pense, julgue, não abra mão da sua consciência. Assim, a própria vida de Hannah
Arendt é um testemunho sobre sua lealdade ao que pensava, refletia, julgava.
Contra tudo e contra todos, ela teve coragem de tocar em temas polêmicos que a
Europa se recusava a refletir, a pensar.
Em determinado
momento do livro, a autora Laure Adler indaga: “Visivelmente impregnada de um
cristianismo primitivo, influenciada pelas Confissões de Santo Agostinho,
fazendo do amor pelo bem uma qualidade política, será que Hannah se tornou
crente?”.
Hannah, aluna de Bultmann e fiel leitora de Kant,
Heideggeriana, busca uma filosofia que ultrapasse seu professor de
fenomenologia, Husserl: ela crê que o nascimento é o fundamento da vida e faz
da vida a razão da sua filosofia. Cada nascimento é um novo começo, é a vida
retornando, dando uma nova chance ao homem. A biógrafa de Hannah relata que,
assistindo ao Messias de Handel, a filósofa teria tido uma iluminação: “Tivemos
um filho. (...) O cristianismo é de qualquer maneira alguma coisa”. Leitora
atenta dos Evangelhos, especialmente o de São João, Arendt vê de maneira
especial o nascimento de Jesus como uma cisão na história da humanidade. “Todo
começo é salvação, é em nome do começo, em nome dessa salvação, que Deus criou
os homens no mundo. Cada novo nascimento é como uma garantia de salvação no
mundo, como uma promessa de redenção para aqueles que não são mais um começo”.
Diante dessas palavras de Hannah Arendt, recordo os versos do poeta brasileiro
João Cabral de Melo Neto, os quais podem ser apresentados como síntese poética
da filosofia proposta por Arendt:
Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.
Diante da indagação se teria Hannah se tornado crente, Adler
menciona uma enigmática e insistente homenagem que Hannah presta a Jesus: “O
milagre que salva o mundo, a esfera dos negócios humanos, de sua ruína normal e
natural é, em última análise, o fato do nascimento, no qual a faculdade de agir
se radica ontologicamente. (...) Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca
tenham sido expressas de modo tão sucinto e tão glorioso como nas breves
palavras com as quais os Evangelhos anunciaram a boa nova: ‘Nasceu uma criança
entre nós’...”.
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