O Amanuense Belmiro [****]




Cyro dos Anjos
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164 Páginas

"O narrador se propõe, no início, a contar as suas memórias, um livro sentimental, não um romance, mas lentamente o presente desliza para o primeiro plano e as memórias iniciais se transformam num 'esboço de livro' para, então, ele se tornar um 'diário', que cobre pouco mais de um ano - 1935 - da vida de um amanuense, Belmiro. Desse modo, a natureza romancesca é duplamente ocultada nesse jogo de transformação de memórias em diário, tentando posicionar o leitor no lugar pretendido - no mais íntimo da vida do narrador, que é o próprio livro. Incapacitado de viver e de se entregar ao outro, o amanuense só adquire substância transformando-se em linguagem, só aí ele consegue inventar uma forma de fuga que o mantém vivo."

2 comentários:

Jorge Fernandes Isah disse...

Cyro do Anjos é um conterrâneo, se não belorizontino, passou boa parte de sua vida aqui, escrevendo, inclusive, o seu mais célebre romance: O amanuense Belmiro.

Inicialmente escrito no jornal “A Tribuna” de BH, em forma de crônicas, Cyro compilou tudo e publicou este livro em 1937. O que dizer dele? No mínimo, uma grata surpresa. A fluidez do texto, uma linguagem clássica, poética, irônica, elegante, e com sofisticada estruturação, demonstra que o autor era um erudito e sabia muito bem o que fazia.

O que me chamou a atenção, entre muitas coisas, é o fato do livro ser publicado em um periódico, assim como Dostoieviski e muitos outros fizeram em seus grandes romances, um formato bastante popular, e ainda assim não se entregar aos, digamos, "apelos do povo". Com isso, quero dizer que a classe letrada da época [não acadêmica, mas os que sabiam ler] tinham um nível de linguagem muito superior ao atual, e uma capacidade igualmente superior de compreensão e entendimento do texto. O fato de se ter hoje uma população "alfabetizada" em nada melhorou essas qualidades, pelo contrário, a produção literária brasileira e mundial revelam a fragilidade e a incapacidade intelectual dos nossos dias, tanto de autores como de leitores, ou vice-versa. Qual jornal, hoje, se aventuraria a publicar crônicas como as do Amanuense? Acredito que nenhum, pois vivemos um período em que as artes primam pelos sentidos mais baixos e vulgares do ser humano, quase tudo não passando de gritos e gemidos, ou como diria Shakespeare: Muito barulho por nada!; o homem, como um terrorista, sabota a própria vida ao resignar-se aos instintos mais vis e ignorar os valores nobres da vida, a família, a amizade, o bem, a fraternidade e tantas outras coisas que têm se desprezado como se fossem "mal" ao homem, e ao fazê-lo ele mesmo se torna em seu principal algoz... Mas isto é outra história...

Há palavras que tive dificuldade em encontrar nos principais dicionários da web. Só mesmo o bom e velho Aurélio [em formato físico] pode me socorrer [mais uma vez, a prova, não de uma evolução linguística, mas de uma redução da língua, em que vamos, cada vez mais, nos habituando a exprimir-nos com poucos grunhidos].

O que o autor nos mostra é um quadro da Belo Horizonte [e porque não do Brasil] dos anos 30. Um período em que a sociedade saia do período essencialmente rural para o urbano, o que pode nomear o “Amanuense” com um livro típico da literatura regional.

Assim como Machado de Assis descreveu com brilho o seu tempo, Cyro se espelhou nele para fazer o mesmo. Temos o amanuense, um funcionário público mediano, oriundo de uma família tradicional de Caraíbas [provavelmente a mesma Caraíbas no norte de Minas], em quem o pai tenta, sem sucesso, dar-lhe um grande futuro. Ao contrário, desde jovem, Belmiro se entregou ao ócio e indolência, à prática dos prazeres mínimos, que não o satisfaziam, mas dos quais não conseguiu se livrar, quero dizer, substituí-los por algo mais nobre.

Aos 38 anos, decidiu escrever um livro de memórias, que se revelou, desde cedo, uma espécie de diário, fugindo do passado para se aventurar cada vez mais no presente. Não há grandes "movimentos" na história quase banal, como a vida de um burocrata parece insinuar; mas temos um autor que domina a técnica narrativa, e sabe muito bem como prender o leitor. Por isso, não espere reviravoltas ou grandes emoções. Como o próprio Belmiro, elas são triviais e, certamente faz nos ver nele uma imagem do homem médio na sociedade, nós mesmos.
[continua]

Jorge Fernandes Isah disse...

[...]

O fato é que Belmiro, apesar da vida medíocre, sem perspectivas sequer de casamento [no que me parece o motivo do clímax de sua frustração; a viagem ao Rio de Janeiro, apenas para ver sua amada platônica partir em lua-de-mel para a Europa, é indicativo da secundariedade e invisibilidade de sua vida], não se dispõe a mover um dedo para mudá-la. Ele se entrega ao pessimismo, à acomodação, vendo as mudanças acontecerem ao seu redor sem que, aparentemente, tenha participado delas, e sem que reaja, ainda que elas o perturbem e provoquem sentimentos com os quais ele não quer lidar. Um homem adulto como ele, no seu íntimo, tem atitudes e comportamentos infantis ou ingênuos, nos quais prefere fazer troça do que encarar a realidade e gravidade dos fatos; entregando-se à ilusão como maneira de afastá-los.

A sua vida é superficial, e assim contamina todas as suas relações, e se reflete naquilo que mais teme perder, suas amizades, seu círculo social, o qual vê impotente se esfacelar. Resta-lhe criar outro círculo, como solução para o que não pode sustentar.

Com isso não estou a dizer que o amanuense é um homem sem graça, linear. A riqueza do romance de Cyro está exatamente na "montanha-russa" interior em que Belmiro trafega. Conflitos há aos montes, dúvidas, paradoxos, incertezas; ele apenas se sabe perdido sem mesmo querer ser achado. Não é difícil, como já disse, nos vermos refletidos em sua desordem. O marasmo exterior se contrapõe à "hostilidade emocional", o que se torna na base narrativa.

Para quem, como eu, sempre viveu em BH, ler as descrições da Rua Erê, dos Pampas, da Bahia, "Avenida" [Afonso Pena], o Mercado Central, e outros lugares da então jovem cidade [BH tinha pouco mais de 40 anos de existência] remeteu-me a uma nostalgia de tempos que não vivi, mas que pareço ter vivido.

É um livro rico, e que deve ser lido, bem diferente dos arroubos estilísticos de outros escritores do mesmo período. Ainda que possa ser taxado de um romance regional, a linguagem de Cyro é universal, o que torna o Amanuense Belmiro em dos grandes da literatura mundial.

Após a leitura, classificarei os livros assim:
Péssimo [0] Ruim [*] Regular [**] Bom [***] Muito Bom [****] Excelente [*****]